quinta-feira, 10 de outubro de 2013

CRIANÇAS DE AÇUCAR

Meu querido diário,

não te importas se a minha escrita for abrasileirada, pois não? Claro que não! Sabes que nós adquirimos caracteristicas do lugar. Já me aconteceu passar a sonhar, enquanto dormia, numa outra língua. Acontece. Quando vivemos num lugar pode acontecer também sonharmos um rumo melhor. Bom sinal! Não? Sabes uma coisa? Hoje vi um trem!! Lá em Sumaré tem trem! Era bom que também tivesse mar! Tenho saudades do mar. Respirá-lo renova-me energias.

Um tremzão de mercadoria: "Sugar Express". Imaginei logo um trem precorrendo todo Continente Americano distrubuindo doçura. No caminho de volta vim a pensar sobre o que é doçura. Sabes uma coisa meu querido diário? Fui a Sumaré para partilhar um momento de teatro para pessoas excepcionais. Bonito termo para designar pessoas com deficiências cognitivas. Porque realmente elas são excepcionais. De uma criatividade admirável e com muita doçura, mesmo quando os seus gestos são bruscos e algumas vezes agressivos. É doce descobrir o brilho de um olhar aparentemente desfocado onde um sorriso se escancara sem pudor.

Sabes meu querido diário hoje descobri que indignarmos-nos é um gesto de doçura. Por vezes o açucar é aspero. O açucar mascavado é diferente do refinado. E tem indignação que não dá para ser refinada.

Há dois dias atrás fui assistir a um espetáculo de teatro na estação cultura de Campinas. "Agora e na hora da nossa hora" com Eduardo Okamoto. O lugar é uma estação de trem desativada e ocupada, por vezes por consumidores de crack. Muitos deles crianças. O espetáculo falava sobre a chacina de meninos de rua. E confirmo uma vez mais que não é aceitável aceitar o inaceitável. E não me importo, meu querido, de incomodar consciências em relação isso. Porque é insuportavelmente incómodo existir uma realidade onde se matam crianças de rua. Porque são de rua? Quem as abandonou? Quero acreditar do fundo do meu coração que o facto de ninguém se pronunciar sobre esse assunto tem haver com uma reflexão mais profunda. Quero acreditar que podemos ser melhores pessoas. Quero acreditar que cada um pode fazer a diferença nos seus gestos cotidianos.

Hoje, na escola de pessoas excepcionais em Sumaré, sorri de mim mesma. Lembrei-me como eu levava, há uns tempos atrás tão a sério o meu fazer profissional ao ponto de perder doçura por ser tão exigente. Hoje lembrei-me do meu mestre Sergio Claramunt que contribuiu para a minha arte de palhaçaria em contexto hospitalar:"Que energia queres deixar no quarto, no serviço, nas pessoas?"
Quero deixar boa energia, tranquilidade, delirio, sonho e doçura. É isso doçura! E sei que fico muito azeda quando o inaceitável é naturalizado. Dia doze é dia das crianças. É dia de nós. E sabes meu querido diário, já fico muito feliz se houver uma só pessoa a ler este meu longo texto numa rede social cheia de estimulos. Hoje apresentei um espectáculo que dá enfase ao silêncio e fiquei feliz com o impacto. O impacto da empatia, da energia que trocamos uns com os outros. Obrigado seres excepcionais de Sumaré* , por onde o trem Sugar Express passa! Obrigada Denise Valarini pela sua doçura, amizade e todo o seu apoio. Obrigada do fundo dester meu coração de açucar mascavado, muitas vezes nada refinado.

*APAE- inclusão da pessoa deficiente (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de Sumaré/SP)

a pipiripipiu
Br, 10.10.2013
Crianças de açucar, Vik Moniz

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