segunda-feira, 28 de junho de 2021

ESTOU AQUI

 Quando acordou tinham-se passado 20 anos. Não sabia onde estava. Olhou ao redor e viu um rosto conhecido, porém envelhecido. A sua língua estava dormente. Os lábios secos tocaram-se suavemente. Pronunciou um “mmmm” baixinho. Uma lágrima daquele rosto em frente ao seu verteu-se. Os seus olhos arregalaram-se o quanto puderam. Como um suspiro pronunciou “ãããã’. Um sorriso alterou o percurso das lágrimas daquela mulher pelas rugas dos seus olhos. “ Eeeeee” foi perlongado. A sua imagem refletiu-se nas retinas daquele seu filho há tanto adormecido.

A Piu
24/06/2021
Escultura: Michael Alfano




AS PAREDES TÊM OUVIDOS

Durante muitos anos forram-me com aquele papel grosso de parede com uma textura que dava para limar as unhas. Na sala de jantar o papel era dum tom verde seco para dar aquele ambiente romântico e também utópico às longas reuniões que se faziam noite adentro entre a leitura da nova peça escrita por alguém que foi afastado pelo partido. Aqui entre nós: as paredes têm ouvidos, mas eu mantenho a honestidade e o medo de não pronunciar esse nome do artista que virou maldito até ao seu suicídio. Mathias é o meu dono apesar de ele não me ter comprado e sim o partido ter me oferecido para esse conceituado encenador. Eu localizo-me até hoje no centro da cidade. Mathias agora vive no campo, depois da queda do muro não quis voltar aonde guardava belas, melancólicas e trágicas memórias. Depois que lhe mostraram as escutas instaladas em mim pela KGB decidiu morar no Brasil, no interior do Estado de São Paulo. O que conto a seguir escutei dum sonoplasta da ex companhia teatral de Mathias seu amigo íntimo. Escutei na minha entrada principal quando me puseram à venda assim que a especulação imobiliária disparou em flecha: Mathias, um dia cruzou-se com um homem de idade bastante avançada e por momentos teve a sensação de que conhecia aquelas feições de algum lugar. Nessa noite sonhou com o dia em que os nazis levaram o seu pai em Leipzig, tinha ele 3 anos. Quem o algemou era aquele homem, mas muito mais jovem claro. com quem se cruzara numa rua de Bauru. Na manhã seguinte, ao som de Uakti, comeu um strudel feito por ele mesmo e bebeu uma água de coco. Depois deu um longo suspiro. Enquanto uma nuvem passava do Oeste para Leste.

A Piu
24/06/2021
Pintura: Michael Sowa

CAUSOS TRANSVERSAIS

Álvaro, filho de Alzira e António, chegou sozinho de navio aos 12 anos de idade ao outro lado do oceano, ao outro lado do mundo. Entrou clandestinamente num navio e depois de ser descoberto passou a descascar batatas no convés. Menos mal! Não passava fome como na terra da sua família que deixara para trás. Quando chegou ao porto de Santos aquilo era tão grande e inusitado que sentiu saudades da miséria da santa terrinha, como se habitou a ouvir e a chamar ao lugar onde nascera e crescera entre ovelhas, água benta e carpideiras. Sim, era um lerdo... Sentia-se um lerdo pois no seu coração não habitava malandragem. Até aprendê-la para sobreviver.

sábado, 26 de junho de 2021

CAMÓNE! CAMÓNE!


Ali estávamos nós naquela grande aventura de escalar uma ribanceira bem ao lado da casa dos meus primos. Eu era a única menina daquela trupe entre os 5 e os 10 anos. A aventura era rodar o caminho estreito de toda a ribanceira. Sem cair!!!! Natural e obviamente. Lá embaixo um fundo buraco com silvas e pedregulhos. E nós ali tipo aventura dos cinco ou dos sete como nos livros da Enid Blyton. Só o cachorro é que não nos acompanhou. O Farrusco, aquele vira lata que eu tanto gostava de abraçar e certa vez um carrapato saltou do seu lombo para os meus costados e foi um vê se te avias!!! Um febrão que obrigou a minha mãe a ficar em casa e por isso escutou na rádio que uma escola ía abrir perto de nossa casa. Resultado: mudei de escola quando o februm do carrapato passou e eu me livrei de morrer uma vez mais, pois a asma era uma vizinha que sempre batia à porta dos meus peitos recheados de pulmões e também fazia das suas até se despedir de mim no ano seguinte ao febrão do carrapato ter feito um “ Buh!” na minha existência.
“ Camóne!”, era assim que falávamos entre nós durante as brincadeiras. Por exemplo a dos índios e caubóis, como nos filmes de domingo à tarde no canal 1. Nessa época toda a minha gente, a criançada, queria ser caubói e escalar ribanceiras. Na escola ensinava-se História do ponto de vista do “vencedor”. Do colonizador... Pois... Pois... Morreram as vacas e ficaram os bois, os boys, caubóis. Mas a alma e o espírito dos indígenas nunca morreu e é muito maior que a ignorância e ganância 'dus branquela'.
Catrapum! Ai! E agora! A asmática que fazia do muro do quintal um imenso piano para as suas brincadeiras solitárias caiu em cima das silvas. Ficou a modos que suspensa no ar com o buracum de pedragulhos, urtigas, silvas e outras ervas cortantes e picantes debaixo dela. Os caubóis conseguiram resgatá-la, sendo esta contemplada com uma coleção de arranhões nos braços e pernas.
Nessa época todos os dias o caramba da mocinha caía de cima dum muro. Muros não muito altos nem baixos, mas o suficiente para andar sempre com os joelhos feitos num oito. Também brincava com bonecas, mas só em casa. E quando foi para a escola dava aulas às bonecas e castigavas, além de lhes dar chapadas. Uma espécie de entendimento da pedagogia que se praticava naquela escola. AINDA BEM QUE O FARRUSCO LHE EMPRESTOU UMA PULGA PARA ELA TER UM BAITA FEBRÃO E A SUA MÃE MATRICULA-LA NUMA OUTRA ESCOLA!!!!
Ao longo da sua vida tivera outras escorregadelas. Fzzzzzzzzz Caiu umas duas vezes de moto. Uma delas olhara distraidamente para um mural, que vem muito antes da era do grafitti, para apreciar a arte do movimento dos trabalhadores a sua moto descomandou bem no meio da linha do elétrico, que aqui se chama bonde.
Mural da História: nunca te distrais para não dares um passo em falso, mas se te distraíres não tem problema! Levantas-te sozinha! Ou pedes ajuda a alguém. Se forem caubóis agradeces e avisas que os índios são gente muito massa que não é para ser inimigo, não.
Tchau! Agora vou viajar num balão voador feito com uma lâmpada gigante e uma grande cesta vazia de sorvete de manga. Gosto muito de mangas, principalmente quando se arregaçam para escrever textos de recordações docinhas e malucas.
A Piu
Campinas SP 23/06/2021
Foto: menina Ana, com o seu irmão Pedro e o seu primo João numa localidade suburbana perto da capital, no caso Lisboa. Uma Lisboa dos anos 70 a dar ares de Havana mas distante das brincalhotices das crianças seventis da Abóboda Texas city.
Pode ser uma imagem de 2 pessoas, criança, pessoas em pé e ao ar livre
Gosto
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ANCESTRALIDADE


Olhando para a ancestralidade é revisitar lugares esquecidos e dobras não tão evidentes da História, que a oficial não conta. Honrar quem veio antes para caminhar adiante com mais presença e leveza.

Idealização, composição visual e realização: Ana Piu
Máscara: Denise Valarini
Produção | Direção Artística: Amanda Dumont
Fotografias: @gabriella.zanardi
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quarta-feira, 23 de junho de 2021

GATO ESCONDIDO COM A CAUDA DE FORA

 

Street Art Sculptor ~ Britt - Ingrid Persson
Untitled - Torso

A argila é uma matéria maleável que precisa de ser amassada. Algumas vezes traz algumas "impurezas"- pedrinhas, pauzinhos que também precisam de retiradas. Por ser uma materialidade, no caso terra também conhecida por barro, é plástica. O cérebro também é plástico, logo quando o trabalhamos este altera-se. O barro quando cosido fica duro e já não é moldável, mas se cai ao chão.... Crash! Quebra! Ou racha. Por vezes é melhor quebrar para depois poder unir, disfarçando assim a rachadura. Só quem sabe que caiu e quebrou é que reconhece a rachadura ou quem tem um olhar mais atento.

Já o cérebro convém não cozer... Por motivos óbvios. Além de ficar duro ou mole o corpo que transporta o mesmo perde a vida... E a vida é para ser vivida e é muito provável que o propósito transversal a toda a Humanidade seja vir a este plano terrestre para trabalhar o seu cérebro em conexão com o corpinho inteiro. Em três palavras: trabalhar a sua integridade. Foram quatro palavras com o artigo definido...

Sim, diria que era louvável observar que o homem assumia nas redes sociais que era uma farsa. Talvez já o soubesse, assim como a mulher que o observava depois de ter sido alvo da sua farsolice compulsiva, mas assumir publicamente para os olhares mais atentos significava que o seu cérebro não estava ainda totalmente destituído do resto do corpo onde habitam outros centros de poder inteligente, que muitos denominam de chacras.

E porque o homem assumia ou avisava aos mais atentos que ele era uma farsa? Porque como a mentira tem pernas curtas embora possa percorrer caminhos tortuosos durante anos e anos ele sabia que mais tarde ou mais cedo aquela mulher olharia no fundo dos olhos do seu irmão que defendera a sua dignidade, embora este zoasse dessa defesa. O que se passaria a seguir só o tempo se encarregaria de colocar tudo no seu devido lugar a partir do tal chacra cardíaco e do chacra básico, esse centro de poder da criatividade, da criação, que não se resume somente a genitais sedentos de serem atendidos nas suas necessidades mais básicas, logo egoicas.

O homem que assumira que era uma farsa, por portas e travessas, poderia relaxar e não se afobar em provar que era um sujeito engajado com boas causas, tais como veganismo e o indígenismo e até feminismo!!! Depois de todos os seus comportamentos abusivos até chegava a ter piada. Isso há muito que não impressionava mais à mulher, que como outras minas e manas, já lhe saíra na rifa um esquerdomacho, um dreadlocksmachissimo .... E para sair dessa cilada? Um macho de aparentes boas causas nem sempre larga o osso. Não quer nada a não ser importunar, mas não admite que a mulher continue a sua vida como bem entender e com quem bem entender. E o grande lema é: Se correr o bixo pega, se ficar o bixo morde.

O homem que assumira FINALMENTE que era uma farsa talvez agora precisasse de iniciar esse caminho de auto conhecimento e deixar de zoar das mulheres e do seu próprio irmão postando fotos em tempos pré pandémicos ao lado do mesmo avisando nas entre linhas que a mulher deveria se manter à distância da sua ' broderagem' mal intencionada. Mas como o cérebro tem plasticidade, quem sabe o homem decida olhar honestamente para a sua masculinidade tóxica e fazer alguma coisa por ele mesmo, para ele mesmo. Essa seria a grande vitória duma causa maior: deixar de ser farsa e recordar a sua essência.
VITÓRIA AO AUTO CONHECIMENTO! Se não nos revemos como queremos transformar o mundo e que legitimidade temos em criticá-lo?

A Piu
Campinas SP 23/06/2021

sábado, 5 de junho de 2021

QUANDO OS OBSTÁCULOS DO ENIGMA CHEGAM QUASE AO FIM

 Agora ela podia respirar de alívio. Talvez o mais difícil do que ela considerava enigma estava desvendado. Ela para eles era um enigma, talvez fosse isso que os atraísse ao mesmo tempo que os desconfortava. Não estavam habituados, provavelmente. Não que as mulheres com que se relacionassem não fossem potentes, eles é que provavelmente não davam o valor pleno e estas nunca tinham aberto o peito e dito: "Vem cá dizer isso olho no olho. Um dia ainda havemos de rir juntos de tudo isto."

Talvez nunca tivessem convivido com ninguém que não se encolhe quando lhe pisam muitas vezes os calos. Alguém que não treme de terror perante uma babaquice camuflada, logo não assumida. Não, não era um caso de polícia e sim um caso de amor distorcido que o tempo, com os seus entendimentos vários colocaria tudo no seu lugar sem berros, talvez com choro, com riso, silêncios, hesitações, murmúrios. Duma coisa ela estava ciente, mesmo não se conhecendo pessoalmente. Cruzar na rua é um momento fortuito que não tem o volume de se mostrarem à distância na sua capacidade de sentirem ansiedade, admiração, euforia melancolia, diria até amor confundido com ciúme e orgulho ferido, vaidade com base em velhos padrões de comportamento em que o homem pode e deve ser desejado, bajulado por um séquito de mulheres ao passo que uma mulher não pode, segundo os mesmos, de ter a sua rede de amigos, sejam estes do seu meio profissional ou não. Ela já conhecia essa velha história com contornos muito mais pesadas. Tivera uma filha com um sujeito mulherengo que lhe infernizara a vida e acusava a de infidelidades, deslealdades que ele sim cometia. Uma loucura de cair cabelo e de rir para não chorar. Agora, ao fim de tanto tempo, ela já sabia lidar com essa masculinidade distorcida, pois ao invés de se celebrar o encontro sabotava-se o mesmo. Saberiam os dois homens que aquela mulher, como muitas,  em algum momento pudesse o correr risco de vida por conta dessa masculinidade que acha que pode tratar a mulher de qualquer jeito? Bom...

Mas ela agora sentia que aquela etapa mais difícil de ultrapassar estava quase a chegar ao fim. 

 Uma boa história de superação de obstáculos é aquela em que o vilão não é só vilão nem o bom mocinho é só mocinho bom.

Dois irmãos frente a frente, lado a lado. Diferentes e iguais na sua conduta. Apesar de algumas vezes se rivalizarem eles eram amigos de coração e muito provavelmente eles se identificariam um com o outro no que há de mais sublime e também sombrio um no outro. E esse era o grande obstáculo que a mulher teria de desfazer.

 Era vertiginoso concluir isso, pelo menos para aquela mulher. Mas ao mesmo tempo libertador.

 Aguardariam ambos que ela lhes dissesse: Tá tudo bem? Eu amo-vos incondicionalmente porque também tenho aprendido muito com vocês. A me posicionar ainda mais e discernir as suposições, fruto de inseguranças e crenças de não merecimento de amor. Despotismo...

 Ela agora voltaria a escrever com todas as letras , como se se falasse olhos nos olhos: Desejar, amar uma mulher não passa por oprimi-la. Se vocês acham que ela não é confiável talvez tenham de rever se vocês são confiáveis e se porventura ambos, cada um a sua maneira não projetam nas mulheres as vossas crianças feridas. Mas se ela não é confiável, afastem-se dela. 

Ela agora sentia alívio em confirmar que aquele que assumiria, assumira o papel de vilão durante um largo tempo fazia esforços, pelo menos aparentemente, para valorizar as mulheres. Ao passo que o seu irmão, que era boa gente, algumas vezes deixava escapar alguns acessos de ciúmes. Ambos mereciam ser amados, mas para isso precisavam de baixar a guardar e aprender A amar. Isso ensina-se? Talvez.  . Mas exercita-se.

 A mulher sorriu. O homem já não rivalizava mais com o seu irmão tal qual bebê chorão. O seu irmão, apesar de boa gente, olhava para si mesmo com mais cuidado e atenção para que ambos passo a passo dispensassem a broderagem. No fundo no fundo ambos sabiam que a broderagem não os fazia felizes, tampouco a vaidade de serem bajulados e que os levaria acessos de raiva fruto de ciúmes. Eles queriam mais que isso, A mulher respirou de alívio quando vislumbrou uma luz ao fundo do túnel para todo aquele engodo, aquela cilada que o homem que assumira mas não o papel de vilão criara para todas as partes envolvidas. O seu irmão e aquela mulher só podiam agradecer aquela oportunidade. A mulher esperava ainda o dia em que todos se pudessem olhar nos olhos sem grandes dissertações, nenhuma aliás, e riem-se como quem diz: Já passou! Tá tudo bem agora! Viva o amor. 

A Piu

Campinas SP 05/06/2021