domingo, 30 de setembro de 2012

ESCURO

Dentro daquele caroço está o escuro do universo. Um imenso escuro. Um escuro sem fim. Por isso é escuro, porque não se vê o fim. Um escuro muito escuro onde os mistérios da vida deambulam, brincando à cabra cega. Dentro daquele caroço tem um coração. O coração do universo. Um coração que palpita ora com vitalidade ou cansado. E um escuro imenso. Uma imensidão de escuro.
Então, o caroço descarnado,
ressequido pelo tempo cai ao chão. Uma fina membrana que o envolve estala. Uma racha abre-se. Um turbilhão lá dentro. Mistérios que se encontram. Que se chocam. Quebrado o caroço a escuridão espalha-se, dilui-se no ar, esbate-se. O caroço quebra-se e o dia surge. Uma longa e grande madrugada rompe o espaço. É de dia e o caos instala-se. Os mistérios da vida andam à solta. Alguém tenta ordenar, religar. É de dia e há quem anseie a noite. Há também quem tente dormir um longo sono na esperança que toda essa confusão passe. Mas a luz do dia insiste em se propagar. Há quem se sinta perplexo com tanta contradição. A luz do dia que inaugura o caos? Mas o caos está lá, exactamente para nos obrigar a ordenar, a religar o que antes era um mistério que se encerrava em si. Agora o mistério reside no desafio de procurar caminhos possíveis para a compreensão desses mesmos mistérios da vida.
 
A piu
br, 30 de Setembro de 2012
 

FINAIS DE TARDE

O pó do caminho que se levanta. A bicicleta passa levantando a poeira. As folhas brilhando ao sol. Os verdes, os múltiplos verdes que se cruzam. E a poeira castanha da estrada. Uma nuvem que se funde com a luz e a bicicleta que passa, Uma roda que corta a nuvem. Pedalando cadenciadamente, subindo a estrada. Uma caixa de madeira suspensa amarrada com uma corda. Uma abóbora castanha em forma de courgete ou uma beringela esguia e rígida com cor de jacaré de pantanal abraça-se à caixa, defendendo-a por instantes das amarras. E os pedais rodam cadenciadamente. O cabelo branco junto às fontes não escurece à passagem pela nuvem de pó. Cumprimenta o velho vizinho que de feições japonesas planta brócolos brasileiros em vez de japoneses. Será que o vizinho de traços nipónicos não gosta de brócolos japoneses pois a sua forma lembra a bomba de Hiroshima? No seu quintal também não existem couves-flor. Alvas alfaces espreitam da terra, Salsa. Couves. Nas folhas podemos embrulhar os nossos sonhos, sacudir os nossos medos. Numa couve-flor ou nuns brócolos os caminhos podem ser mais sinuosos. O vizinho de traços nipónicos cumprimenta o homem que pedala cadenciadamente, transportando uma caixa de madeira suspensa com um legume que lembra um mutante com cor de jacaré de pantanal. O homem para e põe-se à conversa com outro homem. Meninas e moças no caminho de cabelo solto acompanham um namoro duma outra que dá risadinhas enquanto segura o telefone. O celular. O telemóvel. No virar da esquina uma grande e gorda lua surge do horizonte próximo do prado. Um cavalo come. Uma lua tão próxima lembra-nos que há um universo imenso. Um cosmos infindável. “Onde acaba o fim? Qual é o tamanho do infinito?” pergunta a criança. Mais tarde a lua sobe. Os raios de sol já namoram com a sua alvura. Anoiteceu. Será que daqui a uns tempos é possível ligar para alguém que viva na lua? Ainda hoje a lua estava tão próxima do prado, mesmo junto ao cavalo que pacientemente mastigava. Ainda hoje a menina ria junto do bocal do telefone e a lua tão próxima.
O homem continua a pedalar cadenciadamente. Dentro da caixa, o homem leva o escuro. O escuro da noite escura. Dentro do escuro navegam os mistérios da vida. O mistério da beleza. O mistério do terror. O mistério do amor e do ódio. Da beleza duma flor no ar que causa um espanto sinistro. O mistério duma roda que roda cadenciadamente levantando a poeira da estrada. Uma roda que reflectida no céu se torna uma lua. O homem para. Encosta a bicicleta a um cacto. Tem cuidado para não se picar. Do bolso tira um canivete. Perfura o cacto. Do outro bolso tira um canudinho e sorve o leite do interior da planta. Da bicicleta inclinada o escuro espreita da fresta da caixa. O homem coloca a corrente da bicicleta. As suas mãos ficam negras de óleo. Negras como a noite escura. Passa as mãos pela areia. A gordura sai, mas o negro como o negro do escuro da caixa permanece. Volta a pegar na bicicleta. Endireita-a. Dum impulso volta a equilibrar-se nas duas rodas. Atravessa a nuvem de pó numa pedalada cadenciada com o olhar fixo nos mistérios que transporta dentro da sua caixa, que suspensa é poupada, por instantes, da corda que a segura ao equilíbrio efêmero da bicicleta.

A Piu
br, 30.09.2012

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

NIVELAR POR BAIXO


Vejo imagens tremidas. Rio-me do que desconheço. Troço do que me é estranho. Torço o nariz ao que não estou habituada. Creio que todos vivem como eu. Acho que se não vivem, pelo menos deveriam... Comparo do alto do meu pedestal feito de batata cozida as misérias do outros povos, não enxergando que o meu povo padece das mesmas misérias. Acredito que sou o que nunca alcancei. Piscando o olho acredito ver com nitidez o que se apresenta desfocado. Habituo-me aos velhos hábitos, colo-me a dogmas. Dogmas são como gomas; grudam no pensamento evitando que o cérebro seja irrigado. Deambulo por velhos caminhos achando que são novos. Deambulo sem me deixar surpreender. Nivelo por baixo. Reproduzo o que critico sem me dar conta de nivelar por baixo. De que vale um pedestal de batata cozida se não partilho as minhas questões, as minhas dúvidas, as minhas fragilidades, as minhas certezas que nada é certo? Que a morte é eminente. Que os dogmas são verdades mortas fingindo-se vivas. Que os velhos hábitos estão gastos e mortos fingindo-se vivos e eficazes. Que a eficácia só acontece quando nos entregamos humildemente. Que a humildade não é uma fraqueza e sim uma força da natureza. Que a natureza é para lá daquilo a que nos habituámos a chamar de natureza. Que voltar às raízes é disponibilizar-me a crescer, deixando que os galhos cresçam, as folhas surjam, as flores espreitem, os frutos amadureçam, as folhas sequem, caiam desnudando os galhos e que estes durem anos e décadas e séculos e nós abraçados às suas raízes sabermos o quanto é bom crescer não nivelando por baixo.

 

A Piu

Br, 27 de Setembro de 2012

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Quando eu for grande


      Quando eu for velhinha, bem velhinha... Aliás, quando eu for mais idosa... Aliás, quando eu for maior. Maior de idade. Aliás quando eu for grande e ainda mais desbocada. Quando eu for grande, tão grande que olharei para o lado, para a frente e para trás e poderei respirar de alívio e pensar com os meus botões: "Meninada tá bem ou pelo menos faz por isso; seguindo o seu caminho. Quando precisarem estou aqui". Quando eu for grande e de tão grande mirrarei e que não terei de provar mais nada a ninguém para além daquilo que sou e sonho... viajarei de mochila às costas. Se as forças me permitirem farei grandes caminhadas pela América Latina, pela Índia, pelo Nepal. E o tempo se dilatará. Sem pressas. E que me importa que me chamem velha gaiteira!... E que me importa que com aquela idade deveria deixar-me dessas coisas e procurar mais conforto!Quando eu for grande e de tão grande mirrarei espero poder conseguir viver e subsistir sem muito dinheiro, mas com muita imaginação lúcida para perpetuar a arte do encontro e da reciprocidade. "Velha gaiteira! Perdeu o juízo de vez!" murmurarei de mim para mim. Porque quando eu for tão grande que nem os 100 anos estremecerão, quem diz 100 diz 110, espero poder ainda rir de mim. E quando a morte chegar abraçá-la apaziguadamente.

a Piu
br, 26 de Stembro de 2012

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Desejos, inquietações e impulsos

Somos culturalmente agitados. A sociedade ocidental contemporânea, com suas especificidades locais, imprime, incute um ritmo, uma aceleração que de uma maneira ou outra leva-nos a sair do nosso centro vital; a sair do nosso eixo, onde o cor
po e a mente estão intimamente ligados entre a tensão e a harmonia. Por outras palavras, onde a auto escuta e a disponibilidade de escutar o meio ambiente. A nossa opinião sobrepõe-se à escuta. Sofremos da síndrome de antecipação. Há como que uma recusa de nos mantermos no mesmo lugar e deixarmo-nos afectar, impregnar por aquilo que nos rodeia. Há como que uma fuga da nossa própria existência. Optamos, assim, para viver em estado de zapping. Os pensamentos jorram em catadupa, não sendo obrigatório que os mesmos sejam consistentes e consequentes.
Por medo do vazio preenchemos a nossa respiração, as nossas batidas cardíacas, de ruídos, de actividades que nos fazem acreditar que estamos conectados com nós mesmos e com os demais. Amedrontamo-nos com a ideia de abismo, do nada, do vazio. Como se o vazio fosse algo que se esvazia-se em si mesmo. E seu o vazio for exactamente o contrário? Dentro da imobilidade habita um universo imenso de vontades, desejos e inquietações e impulsos.
A Piu

sábado, 22 de setembro de 2012

Solzinho dum amarelo acinzentado


Bom!.. E volto a perguntar-me, porque o não perguntar intriga-me e a intriga intriga-me igualmente: Porque é que a intriga insiste em corcomer a transparência? Será que a intriga liberta um tipo de toxina que vicia? Dando origem a efeitos nefastos no estado anímico da pessoa. A coluna vertebral torna-se uma espécie de pega monstros preparada para dançar uma dança da caça às bruxas. Dança essa orquestrada por alguém que se bajula ou finge-se bajular para assegurar o nosso lugarzinho ao sol dum amarelo desmaido, mas ao sol. Aliás! Ao solzinho amarelinho esbatidinho quase quase cinzentinho. Um lugarzinho ao solzinho dum amarelinho acinzentado. E lá vamos nós vivendo a nossa vidinha como podemos e queremos, mesmo que barafustemos.


A piU Br, 22.10.12

TI RAUL


Ninguém nasce ensinado, mas ele há uns que sim. Ou até parece que sim. Ti Raul falava que falava. De uma sapiência! Escutá-lo era como esfolhear aquelas revistinhas das Seleções Readers Digest.Histórias levadas da breca que nas suas cordas vocais eram uma verdade determinantemente determinista. E lá ficava o Ti Mário embevecido a admirar aquele palavreado, aquele jeito de poisar as mãos sobre a mesa, com um olho no horizonte e outro na bosta. Para o Ti Mário o Ti Raul era o máximo! E reconfortado com tanta intelectualidade lá enrolava um cigarrinho palha correndo o risco de cuspinhar a mortalha em demasia, de tão babado que ficava pelo palavrear do Ti Raul.
Ti Raul também era um bem feitor. Voluntário num hospital a sua beneficiência foi dispensado, pois Ti Raul levou à letra a tal da palavra benefeciência e debitava a sua ciência aos pacientes. Dentro sua bata branca Ti Raul incorporava o médico, o sô doutor. Confesso que guardo alguma curiosidade sobre os conselhos médicos ele daria às pessoas, e se estas seguiam as suas diretrizes, e se seguiam quais as consequências.
Bom, mas bom que o Ti Raul descanse em paz, ande lá por ele andar. Talvez seja o melhor lá da nuvem dele, como era cá por baixo. O melhor da sua rua. E até consigo imaginar o Ti Mário do lado dele, sentadinho na nuvem. Mas também consigo imaginar o Ti Mário "inocentemente" a roçar o seu cigarrito no braço do outro ou acidentalmente dar-lhe um toque que fizesse o Ti Raul cair da nuvem. E isto porquê? Porque se um dia o Ti Mário conhecesse realmente o Ti Raul e chegasse à conclusão que o Ti RAul era cá uma farsa de mau gosto!.. Utla! Tal num tá a moenga, moço do abrão!
#papelito de cigarrito

br, 22 de Set. 2012

EU CÁ SOU A MAIOR



Sou a máior cá do meu bairro. Todos dizem na rua! "Lá vai ela! Lá vai ela!" E eu, como não sou de ferro..., babo-me. E como os caminhos são de terra batida fica um lamaçal de baba com terra!!! Mas não me preocupo! É orgânico! Bio! Neo rural! Enfim, uma mulher moderna que se baba no meio da estrada de terra batida, entre bananeiras e pés de pêra abacate! E como sou a maior cá do meu bairro tudo o que ultrapasse o nível do meu entendimento, desdenho, nivelo por baixo. Mas agora que sou bio neo rural light estou muito mais tolerante. Muito mais! Fiz um curso de constelação familiar que agora tudo faz mais sentido! Muito mais! Paguei uma pipa de massa, mas valeu a pena! Agora sei como ser amiga do meu amigo. Eu até já sei abraçar! Ofereço abraços pela rua! Outro dia uma criançinha fugiu de mim. Não entendi porquê. Vou ter de fazer o módulo II “Como ser boazinha e amar todos os seres vivos”.

A piU
Br, 22.09.2012

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

O ursinho tédio








Eu hoje tou muito chateada com tudo!... Só apetece-me bater com os pés no chão, porque não tenho nada para me chater. Que chatice! Que tédio! E ser feliz é tão chato! Não dá luta! Tou tão chateada! O que posso fazer? Ir à manicure? Falar m
al dos outros? Posso ir escutar o senhor padre. Ai mas aquele vai lá agora é tão chato! Fala de montanhas e de coisas que aconteceram há 2000 anos.... Que chato! O que é que eu posso fazer neste dia tão entediante? ... Tenho aqui o cartão de crédito!... Mas meter-me naquelas filas enormes que encrava o sistema!... Sim! Agora resolve tudo pagar tudo com cartão e depois é no que dá! Não há cão nem gato que não tenha um cartão! Que chato! Olha ! Vou jejuar para saber o que é passar fome! Jejuo uma manhã e depois vou aquele lugar bonito com gente bonita comer um brunch. É isso! Nem preciso de conversar! Porque é tão chato contrariarem aquilo que eu penso, sinto, digo e faço. Ai! Quero bater outra vez com os pés no chão!
Hmmm... um brunch delicioso!... Já tou a imaginar! Bom, mas por agora vou-me dedicar à minha chatice! Concede-me um ar engajado com o mundo.

A piU
Br, 20 de Setembro. 2012
(imagem ursinho tédio)

PENSO RÁPIDO LOGO RESISTO






Eu hoje penso que um dia pensarei em voltar a pensar em não mais pensar naquilo que não seja pensável e até mesmo impensável para o pensamento pensado.
A piU
Br, 21 de Set. 2012

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Ele há de tudo!



A - Ai o meu mais pequeno tem-me acordado noites inteirinhas!
B - Eu sei o que isso é! O meu acaba-me de jantar e quando se vai deitar ainda quer comer!
A - O pequeno enfia-se-me na cama e não me deixa dormir! Ando aqui que nem posso! Uma neura!
A - Ah! Mas não podes deixar! Tens que o educar para a autonomia!
B - Sim, eu ando-lhe a dar uns comprimidos para ver se ele fica mais calmo. O médico diz

que ele é hiperactivo.
A - Ah minha amiga, a hiperactividade é uma virose. Mas o meu quando começa com muitos pulos leva com o jornal.
B - Com o jornal?! Como assim?! Mostras-lhe as notícias e ele fica sem reacção?!
A - Nãããã! Leva com o jornal no focinho!
B - Aaaaah! E ele não se vira?
A - Já se virou. Já não vira.
B - Então porquê?
A - Meti-o de castigo no canil. Ah! Comigo ele não brinca! Agora já sabe! Assim que lhe abro os olhos já põe de patitas para o ar.
B - Parabéns! Tenho aqui uma dentada na coxa! Já não sei o que hei-de fazer! Olha, mas aqueles comprimidos… Muito bons! Em parte resolve!
A – Ai credo! Não fales assim! Achas que eu consigo matar o bicho?
B – Mas quem falou em matar o bicho? São só uns comprimidos para ficar mais relaxado. E em vez de ver tudo a preto e branco vê às cores.
A – Tou a ver que entendes muito de pedagogia canina.
B – Li umas revistas da especialidade que comprei na Pet Shop. Muito jeitosas! Na compra de uma oferecem um molho com sabor a torresmo para pôr por cima da ração.
A – Olha! Tenho de lá ir!

A piU
Br, 15 de Setembro 2012

Engavetar o quê?



O que fazer? O que dizer? Inspira, expira. Expira, inspira. Mas não há inspiração. Os gestos estão congelados. O pensamento também. Estado de pânico. O que fazer? O que dizer? Vou fazer! Fazer!... E não mostrar a ninguém. Mas se não mostrar
a ninguém perde o sentido. Vou engavetar o meu bloqueio. Fecha-lo. Esconde-lo. Onde tenho as chaves? Vou encerrar para sempre esta falta de ideias. Esta falta de impacto. E lá dentro vou-me colocar também. Mas se eu lá dentro me colocar não vai dar para fechar a gaveta a sete chaves! E caberei lá dentro com o meu bloqueio? Ele é tão grande! Vou tentar.
Realmente a pessoa engavetar-se não é lá muito confortável! Onde é que anda o meu bloqueio? Não o encontro, por maior que a gaveta seja é sempre apertado. Estou a ficar sem ar! Quero sair! Quero saiiiiiiir!
Uff! Ar livre! E o meu bloqueio? Onde está? Aaaahhh! Aqui! Maroto! Tu afinal és inspirador!

A piu
Br, 15 de Setembro de 2012


Bicho folha


-Olha um bicho folha!!
- Não é um bicho folha. É uma Maria Fedida.
- Uma Maria quê?!?
- Maria Fedida.
- Ah! Eu conheço um bar de artistas, giríssimo…
-Gi quê?
-Bacana! Chique! Legal! … que se chama Maria Cachuca. Olha, mas tenho curiosidade de saber qual seria público dum bar chamado Maria Fedida….
- Talvez o mesmo que o da Maria Cachucha.
- Pois, deve ser aquela lógica de: ou és amigo cá da chuch

a ou então tas fedida.
- E pá! Lá tas tu!! Não dás tréguas! Tu sabes que nem sempre é assim.
- Tá bem! Tá bem! Não é sempre… Quase sempre!
- Olha, por falar em bicho folha. Tu sabes que outro dia um vizinho ofereceu-me umas alfaces ótimas, saborosas, gostosas. Só que na hora das lavar saltou um bichinho pequenitinho, uma coisinha ínfima, minúscula, que quase nem se via…
- Caramba! Já percebi! E?
- Saltou para a minha perna e vai daí que eu andava nas lides da casa e o bicharoco ferrou-me cá duma maneira! Um buraco enorme na batatorra da perna! Afoguei-o debaixo da torneira! Aaaahhhh! Só depois arrependi-me da atrocidade que cometera. Matar um pobre e inofensivo bicharoco pequenitinho, uma coisinha ínfima, minúscula, que quase nem se via.
- Inofensivo?!!? Já tinha reparado que tens a perna toda inchada, feita num oito. Isso já foi há uns 4 dias!
- Tenha a perna que parece uma pedra. E dá cá uma comichaneira!
- Comi quê?
- Coçeira. Como é que um bichinho pequenitinho, uma coisinha ínfima, minúscula, que quase nem se via consegue fazer isto?
- Um bichinho pequenitinho que é uma besta!
- Sim, quando um bicho é incisivo torna-se uma besta!!
- É, pá! Espera aí um bocadinho que agora deixaste-me a pensar nessa!
- Sim, sim cá para mim quem está a escrever este diálogo tá com preguiça de continuar. Ficou sem ideias!
- Lá tas tu! Deixa-me pensar!! Quando um bicho é incisivo torna-se uma besta… Oh meça!!... Tu às vezes dizes umas!...

A piU
Br, 16 de Setembro de 12

Sem palavras


Primeiro rodou devagarzinho/ abriu os braços/ ergeu o peito para o céu/ rodou mais um pouco/ depois tomou balanço/ e como um peão leve e subtil ergeu-se no ar

Encostou-se às nuvens/ não teve medo do rídiculo/ dançou com ele/ não teve medo de si/ dançou consigo/ dançou e rodou bem devagarzinho numa velocidade estridente/ o peito erguido, espelhando o espaço

Os pés enraizados no chão eram como molas que brincavam com cada obstáculo/ e rodando, rodando/ rodando em silêncio/ que as palavras, por vezes, estão a mais/ melhor guardá-las para outros momentos


A piu
Br, 17 de Setembro 2012

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Venho de um país


Venho dum país onde há sol. E onde há chuva. Onde se comem laranjas, amêndoas, cerejas. Rega-se a comida com azeite e salpica-se com alhos e ervas aromáticas. Venho dum país que ainda não deixou de ser rural e tem um monte de areal para caminhar e sonhar, olhando para o mar. Venho dum país onde o litoral nem sempre cheira a peixe e quando o comemos não é assim tão barato.

Venho dum país onde o sol reflecte sobre a água do mar e do rio e dá aquela luz especial, que dificilmente se encontra no resto da Europa. Venho dum país que mesmo estando na Europa sempre se considerou fora dela. Venho dum país onde a auto estima é baixa, onde a megalomania caminha junto com a mesquinhez. Venho dum país onde existem e existiram poetas e artistas que sentem o mesmo, do Gil Vicente, pasando pelo Eça, pelo Almada Negreiros, pelo Saramago, pela Paula Rego só enunciando nomes sonantes. Portugal é pequenininho, enclausurado numa Península. De costas viradas para si mesmo, achando que já foi dono de meio mundo. Vangloriando-se duma História de usurpações, genocídios, explorações. Mas sempre com a cantilena:”Demos novos mundos ao mundo!”. Ao mundo? Qual o mundo? O mundo de quem? Para quem? Em função do quê?

Venho dum país que sonha que um dia o Dom Sebastião surgirá do meio do nevoeiro para nos vir salvar. Ressuscitado das terras do infiel, virá Dom Sebastião para resolver as nossas maleitas.
Venho dum país que tem sido secularmente fiel a uma instituição religiosa que aproveitando-se da espiritualidade, crença e já agora ignorância, tem cometido crimes horríveis mas sempre em nome de Deus que está lá em cima para ver quem peca e quem peca. Não há lugar para não pecar. Venho dum país onde a culpa, o sentimento de culpa estrangula as pessoas. Onde ser feliz, ou pelo menos desejar ser feliz, é pecado. O que é que os outros vão pensar? Parece mal!...

Venho dum país que o queixume, o apontar o dedo ao outro, o desvalorizar é uma constante. Resquícios duma Inquisição? Resquícios dum isolamento geográfico secular? Resquícios duma ditadura de 48 anos?

Venho dum país onde aconteceu uma revolução dos cravos, que ao que parece não foi violenta. Porém, a descolonização foi. Descolonização feita às três pancadas. Ou melhor, à portuguesa como os próprios designam. Venho dum país que há pessoas têm pudor de se afirmar racistas e/ou xenófobas, mas os seus comportamentos revelam-se.

Venho dum país cuja a geração dos meus pais afirma ter feito a revolução e que lutaram por este e aquele direito. Porém esses mesmo que apregoam isso são tiranos à sua maneira ou à maneira do antigamente. Será que não nascer, nem crescer em liberdade causa danos geracionais profundos? Venho dum país onde o medo, a delação, a conivência, a bajulação são motes. Bajulação a revolucionários cheira a paradoxo… Venho dum pais que ainda não sabe viver com a democracia, onde a infantilização uns dos outros é uma constante. Venho dum país que é a lei do menor esforço, apesar de haverem pessoas empreendedoras. Dum país onde facilmente se adopta o discurso em que os outros são burros, não sabem nada. Um discurso de desvalorização do próximo. Mas ironicamente se todos os que têm esse discurso se juntassem realmente…
Venho dum país onde existe tanta gente com valor. TANTA! Mas que não se valoriza realmente. Porque será? Por ter medo de ser feliz? Por ter medo de se envolver?

Venho dum país que mudou tanto nos últimos 40 anos, mas ainda há tanto para mudar. Mudar o nosso modo de nos expressarmos, deixando a agressividade e a desconfiança desnecessária de lado. Mudar o nosso modo de escutar. Escutar realmente o que o outro tem para dizer. Desejar o sucesso em vez de alimentar invejas. Venho dum país onde ser o único, o primeiro, o pioneiro, o maior, o melhor serve de medalhão. Um medalhão de casca de cebola.

Venho dum país onde as pessoas querem, desejam, anseiam mudança mas ainda estão muitas presas aos seus velhos hábitos. Hábitos da inércia, da desconfiança no próximo, do comodismo e de uma maneira ou outra do novo riquismo. Venho dum país onde as pessoas queixam-se tanto por tudo e por nada, que quando chego a um outro lugar do mundo onde as pessoas passam dificuldades reais e miseráveis!... Onde o sorriso surge ora aqui ora ali, a capacidade de partilha e levar a vida para a frente é o motor… Sinto vergonha de tanto queixume que se pratica no meu país.

- E achs que nos outros paíse é diferente?

- Nalgumas coisas sim, noutras não. Posso falar com mais profundidade do meu porque é o que conheço melhor. Mas sei que não existem paraísos, mas lugares mais respiráveis que outros.

- Gostavas de lá voltar?

-(……………….) Não sei. Talvez. (……..) Sinceramente não sei. Gostava de ir para sentir alento de quem lá vive. Um alento que vem de dentro. Um alento conquistado pela implicação de cada um. Uma implicação que afugente a perguiça, o comodismo, o medo de se comprometer, de se envolver, entregar. Isso, eu gostava. A última vez que lá fui, há pouco tempo, não senti isso. (......) Mas mesmo não esquecendo as minhas raízes, não é lá que eu me sinto “em casa”.

-Curioso.

- Sim, curioso.


A piU
Br, 13 de Setembro 2012
(imagem: SOMBRAS; foto tirada em Berlim no atelier do Jorge e do Sérgio. Setembro de 2011)