quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

O SOFÁ DA MINHA SALA ERA A MINHA PLATEIA

Logo de manhã colocava o vinil de Richard Strauss e esvoaçava pela sala em passos baléticos aprendidos na escola. Depois agradecia numa apoteose de aplausos imaginados. Estes momentos catárticos caseiros duraram entre os 7 e os 11 anos. Esta é uma memória de infância que não quero perdê-la, pois a minha palhaça agradece encarecidamente.

Com uns 14 ou 15 anos chegaram os cds. Os primeiros que tive foi Mozart pela pianista portuguesa Maria João Pires. Na capa ela novinhaaaa. Uns 18, 20 anos. Eu gostava de olhar para aquela imagem de uma jovem pianista concentrada. Hoje ela não tem mais 18 nem 20 anos. Também já não é mais portuguesa. Renunciou a nacionalidade. Ato de coragem. Renunciar um passaporte vermelho da comunidade europeia é porque cansou de vez. Compreensivel.

Daqui a 6 dias, uma mão com cinco dedos mais outro da outra mão, faz dois anos que pisei em território brasileiro decidida a ficar. Tenho um passaporte vermelho e o que me faz ficar aqui legalmente é um passaporte verde da minha filha. Não me sinto estrangeira no Brasil. Nunca me senti de todas as vezes que aqui estive. Falo a mesma lingua com a com a qual me sinto à vontade em expressar. Não preciso de pensar demasiado para me expressar e manifestar o afeto, o carinho por aqueles que desejo bem e que me desejam bem. Por vezes tenho dúvidas se Portugal me deseja bem. Se faço alguma faltinha. Talvez não. Depois penso em grandes senhoras que deram a conhecer Portugal através da sua arte, falo da pintora Paula Rego e da Maria João Pires, e talvez tenha de concluir que a vida continua e estou bem onde sou acolhida e valorizada. Da minha parte é esse o paradigma, valorizarmos-nos realmente, porque um dia a pessoa cansa e renuncia o que tem de renunciar por uma questão de dignidade e posicionamento.

Ana Piu
Brasil, 23.1.2014

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