Tenho andado a pensar o que é essa questão de
solidariedade, de entendermos o que vivemos e a vida alheia, também.
Para ser mais precisa, entendermos as paixões e sofrimentos nossos e
alheios e sermos solidários com a dignidade humana, já não
falando do respeito pelo planeta terra e seus seres vivos. Por vezes
torna-se dificil imaginar catástrofes, guerras, crises, ditaduras quando
nunca as vivemos na pele. Porém é possivel.Há uns meses atrás na cidade
de São Paulo conheci a menina judia mais pequena que se vê na foto.
Esta menina hoje está com 90 e tal anos. Conhecia-a através da sua neta
que foi minha colega numa turnê de teatro. Esta menina mais a sua mãe,
que está no meio, e a sua irmã foram sobreviventes do Holocausto. A
partir do seu testemunho que fala principalmente da sua mãe que deixou
as meninas num convento cristão e abriu fuga escrevi este texto que um
dia gostaria de pô-lo em cena. O texto é romanceado, porém com base em
factos verídicos.
FUGAS EM TEMPOS DE GUERRA
"Teriam
de fugir. A guerra começara. E desta vez eram eles que eram
presseguidos. Teriam de colocar as suas filhas a salvo e fugir. A bebé
ficou com um casal amigo. As outras duas foram para um convento. Se por
algum motivo se separam-se o encontro seria naquela mesma confeitaria
onde degustaram o copo de leite com o bolo de chocolate. Fugiram a pé
pelos Pirineus. Orpheu, Matilde e seu irmão mais uns tantos outros que
igualmente fugiam em troca de ouros e pratas de tamanho suficiente para
ser escondidos em recônditas partes do corpo. Subiram,
desceram,caminharam horas e dias sem encontrar vivalma. No cume onde a
neve cai abundantemente o passador ali os deixou à sua sorte. Mais uns
dias sem avistar uma casa. Numa madrugada,ao nascer do sol sobre o
branco da neve,viram vários telhados sobrepostos. Caminharam naquela
direção enfraquecidos pela fome, exaustos da longa caminhada. Um gato
preto atravessou-se no caminho de Matilde. Quase que caiu. Para ela
aquele gato era um sinal de não entrarem na cidade. Tentou convencer o
resto do grupo. Ninguém aderiu ao seu apelo, alegando que ela morreria
de fome, sede e frio. Matilde, o irmão e o marido não entraram por ali.
Procuraram outra entrada. Mais tarde escutaram os tiros que mataram o
grupo que tinha prosseguido caminho.
Estão em alto mar. A
brisa marítima bate no rosto de Matilde. Orpheu abraça-a por detrás.
Respiram de alívio, convencendo-se que as suas filhas estão bem. Matilde
sente frio, mas o calor de Orpheu acalma-a. À chegada, o seu irmão
informa que seguirá viagem para a Turquia. Só se virão vinte décadas
mais tarde.
Matilde sucumbe ao calor. Orpheu encantado com o
olhar misterioso de Leila deixa-se levar pelas suas delícias. Matilde
sózinha decide voltar para que Orpheu não decida pegar as meninas antes
dela. "Naif, minha mãe. Naif. Meu pai nunca iria nos pegar." afirma uma
das meninas já com 93 anos.
De semblante neutro Matilde embarca numa
embarcação neutra esforçando-se para ter uma respiração neutra. O
comandante olha-a de revés e cordialmente informa-a de que quando
aportarem ele terá de entregá-la às autoridades. Sem perder a
neutralidade no semblante, Matilde pergunta qual o motivo do barco não
atracar. Doença e morte, responde o comandante. Matilde pensa que morrer
não quer. Pelo contrário. Quer encontrar suas filhas vivas para as
poder abraçar. Decide engolir um alfinete dentro do pão racionado a que
tem direito. O comandante informa-a com neutralidade que este sairá nas
fezes. Matilde decide, então, engolir um alfinete aberto.
No
hospital escreve uma carta para o convento pedindo que as meninas não a
visitem. Deseja-lhes bem, mas que tenham paciência que ela também tem.
Dentro da carta coloca meia asa azul de uma borboleta.
Quando
sai do hospital com uma pequena trouxa de roupa na mão vagueia pelas
ruas. Oferece-se para varrer a frente de uma mercearia de escassos
produtos À venda. Esse trabalho garante-lhe alguma comida e água. Numa
tarde, quando a vassoura está sendo colocada no lugar de sempre, e a pá
junto a ela soldados agarram-na pelos ombros e convidam-na a
acompanhá-los. Falam que ela fará uma viagem de trem e que encontrará no
destino um trabalho melhor. Ela pede para ir pegar suas mantas.
Respondem que não necessita, lá há mantas que cheguem. A resistência já
lhe tinha descrito como são os destinos desses trens. Matilde entra no
trem e olha à sua volta, Cruza o seu olhar com uma menina de 16 anos. A
sua pele é branca. Translúcida. O cabelo cor de mel batee no rosto da
mãe. A menina tem a idade de suas filhas. A menina não está assustada.
Resignada. Não sabe o que espera. A ergue o peito convencendo-se que vai
correr tudo bem. Matilde tenta convencer as mulheres a fugirem. Mesmo
que algumas sejam capturadas e mortas outras se libertarão. As mulheres,
em silêncio, olham para ela como uma louca e desviam o olhar lá para
fora para os campos. Matilde olha para a menina e arranca-a dos braços
da mãe. A mãe grita, mas já não dá tempo. O trem começou a andar e elas
saltam. Matilde torce um pé. Pede à menina para se esconder que depois
ela a procura-a. Pede ainda para ter cuidado já que se livrou de uma
morte que preserve bem a sua vida. Matilde encolhida entre duas pedras
grande enrola o seu cachecol à volta do pé e descansa. No dia seguinte
procura a menina. Não a encontra.
Orpheu recorda-se de Matilde
com remorsos. Matilde uma lutadora que ele deixou , que a trocou por um
mero desejo. Leila era carinhosa. Boa esposa, mas Orpheu sente
remorsos. Anos, muitos anos passados depois da guerra acabar Orpheu
procura Matile naquela esquina combinada. Passam-se dias, semanas,
meses. Matilde acompanhada das três filhas também o procura
secretamente. Guarda esse desejo só para si. E passam-se os dias, as
semanas, os meses, anos. Certa vez, uma jovem mulher corre na sua
direção ajoelhando-se a seus pés, beijado-lhe as mãos, agradecendo-lhe a
sua existência. Era a menina, agora orfã, que ela tinha salvo no trem."
Ana Piu
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