segunda-feira, 11 de novembro de 2013

SOLIDARIEDADES

Tenho andado a pensar o que é essa questão de solidariedade, de entendermos o que vivemos e a vida alheia, também. Para ser mais precisa, entendermos as paixões e sofrimentos nossos e alheios e sermos solidários com a dignidade humana, já não falando do respeito pelo planeta terra e seus seres vivos. Por vezes torna-se dificil imaginar catástrofes, guerras, crises, ditaduras quando nunca as vivemos na pele. Porém é possivel.Há uns meses atrás na cidade de São Paulo conheci a menina judia mais pequena que se vê na foto. Esta menina hoje está com 90 e tal anos. Conhecia-a através da sua neta que foi minha colega numa turnê de teatro. Esta menina mais a sua mãe, que está no meio, e a sua irmã foram sobreviventes do Holocausto. A partir do seu testemunho que fala principalmente da sua mãe que deixou as meninas num convento cristão e abriu fuga escrevi este texto que um dia gostaria de pô-lo em cena. O texto é romanceado, porém com base em factos verídicos.

FUGAS EM TEMPOS DE GUERRA

"Teriam de fugir. A guerra começara. E desta vez eram eles que eram presseguidos. Teriam de colocar as suas filhas a salvo e fugir. A bebé ficou com um casal amigo. As outras duas foram para um convento. Se por algum motivo se separam-se o encontro seria naquela mesma confeitaria onde degustaram o copo de leite com o bolo de chocolate. Fugiram a pé pelos Pirineus. Orpheu, Matilde e seu irmão mais uns tantos outros que igualmente fugiam em troca de ouros e pratas de tamanho suficiente para ser escondidos em recônditas partes do corpo. Subiram, desceram,caminharam horas e dias sem encontrar vivalma. No cume onde a neve cai abundantemente o passador ali os deixou à sua sorte. Mais uns dias sem avistar uma casa. Numa madrugada,ao nascer do sol sobre o branco da neve,viram vários telhados sobrepostos. Caminharam naquela direção enfraquecidos pela fome, exaustos da longa caminhada. Um gato preto atravessou-se no caminho de Matilde. Quase que caiu. Para ela aquele gato era um sinal de não entrarem na cidade. Tentou convencer o resto do grupo. Ninguém aderiu ao seu apelo, alegando que ela morreria de fome, sede e frio. Matilde, o irmão e o marido não entraram por ali. Procuraram outra entrada. Mais tarde escutaram os tiros que mataram o grupo que tinha prosseguido caminho.

Estão em alto mar. A brisa marítima bate no rosto de Matilde. Orpheu abraça-a por detrás. Respiram de alívio, convencendo-se que as suas filhas estão bem. Matilde sente frio, mas o calor de Orpheu acalma-a. À chegada, o seu irmão informa que seguirá viagem para a Turquia. Só se virão vinte décadas mais tarde.

Matilde sucumbe ao calor. Orpheu encantado com o olhar misterioso de Leila deixa-se levar pelas suas delícias. Matilde sózinha decide voltar para que Orpheu não decida pegar as meninas antes dela. "Naif, minha mãe. Naif. Meu pai nunca iria nos pegar." afirma uma das meninas já com 93 anos.
De semblante neutro Matilde embarca numa embarcação neutra esforçando-se para ter uma respiração neutra. O comandante olha-a de revés e cordialmente informa-a de que quando aportarem ele terá de entregá-la às autoridades. Sem perder a neutralidade no semblante, Matilde pergunta qual o motivo do barco não atracar. Doença e morte, responde o comandante. Matilde pensa que morrer não quer. Pelo contrário. Quer encontrar suas filhas vivas para as poder abraçar. Decide engolir um alfinete dentro do pão racionado a que tem direito. O comandante informa-a com neutralidade que este sairá nas fezes. Matilde decide, então, engolir um alfinete aberto.

No hospital escreve uma carta para o convento pedindo que as meninas não a visitem. Deseja-lhes bem, mas que tenham paciência que ela também tem. Dentro da carta coloca meia asa azul de uma borboleta.

Quando sai do hospital com uma pequena trouxa de roupa na mão vagueia pelas ruas. Oferece-se para varrer a frente de uma mercearia de escassos produtos À venda. Esse trabalho garante-lhe alguma comida e água. Numa tarde, quando a vassoura está sendo colocada no lugar de sempre, e a pá junto a ela soldados agarram-na pelos ombros e convidam-na a acompanhá-los. Falam que ela fará uma viagem de trem e que encontrará no destino um trabalho melhor. Ela pede para ir pegar suas mantas. Respondem que não necessita, lá há mantas que cheguem. A resistência já lhe tinha descrito como são os destinos desses trens. Matilde entra no trem e olha à sua volta, Cruza o seu olhar com uma menina de 16 anos. A sua pele é branca. Translúcida. O cabelo cor de mel batee no rosto da mãe. A menina tem a idade de suas filhas. A menina não está assustada. Resignada. Não sabe o que espera. A ergue o peito convencendo-se que vai correr tudo bem. Matilde tenta convencer as mulheres a fugirem. Mesmo que algumas sejam capturadas e mortas outras se libertarão. As mulheres, em silêncio, olham para ela como uma louca e desviam o olhar lá para fora para os campos. Matilde olha para a menina e arranca-a dos braços da mãe. A mãe grita, mas já não dá tempo. O trem começou a andar e elas saltam. Matilde torce um pé. Pede à menina para se esconder que depois ela a procura-a. Pede ainda para ter cuidado já que se livrou de uma morte que preserve bem a sua vida. Matilde encolhida entre duas pedras grande enrola o seu cachecol à volta do pé e descansa. No dia seguinte procura a menina. Não a encontra.

Orpheu recorda-se de Matilde com remorsos. Matilde uma lutadora que ele deixou , que a trocou por um mero desejo. Leila era carinhosa. Boa esposa, mas Orpheu sente remorsos. Anos, muitos anos passados depois da guerra acabar Orpheu procura Matile naquela esquina combinada. Passam-se dias, semanas, meses. Matilde acompanhada das três filhas também o procura secretamente. Guarda esse desejo só para si. E passam-se os dias, as semanas, os meses, anos. Certa vez, uma jovem mulher corre na sua direção ajoelhando-se a seus pés, beijado-lhe as mãos, agradecendo-lhe a sua existência. Era a menina, agora orfã, que ela tinha salvo no trem."


Ana Piu





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