quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

JOSÉ


Sentado em frente ao mar, há horas tentando preencher uma nota fiscal eletrónica. “Caraças do sistema!! Obrigam-me a entrar nele, ao menos que funcionasse! Mas o que é que é agora? Mas dá erro em quê? Eu preenchi tudo direitinho! E volta atrás! O messa! Mas o gajo tá a pôr a primeira cidade da lista! Mas não foi isso que coloquei!! O gajo!... O gajo!.... Se ao menos desse para falar com alguém mano a mano! Já lá fui à reaprtição três vezes nesta tarde, Chiça! Chaissa! Ah que podem explicar como é que é mas não podem emitir!... Chiça! Chaissa! É só clicar emitir. Má nada! Ma não!”

Após horas e horas de várias tentativas o funcionário ,que está quase na hora de sair e que também anseia por uma cervejinha à beira mar ajuda-o, clicando no campo emitir. Uffffaa já não recebi hoje, mas amanhã já cá canta! Nheirinho fresquinho na mão para pagar contas pendentes1 É a vida! Eu cá também não curto este sistema de dinheiro e burocracias. Mas olha! De vez em quando temos que levar com esta estupada. O que vale é que tenho o privilégio de fazer o que gosto ! E esta equipa de trabalho é muita fixe! Dá logo outro alento! Pessoas na boinha, escutando-se umas às outras sem levar nada a peito, como ataques pessoais. Levantando questões mas sem coisinhas e coisadas dos tais ataquezinhos personalizados e irritadiços. Nããã nada disso.”

O homem aliviado de ter aquela questão resolvida dá mais um gole na sua jolinha. Olha para o mar e pensa:” Mais daqui a nada vou dar um mergulho. Até pode ser às dez da noite. A água tá sempre morna.” Na areia está um casal de meia idade sentado numas cadeiras de praia. O homem bebe cerveja atrás de cerveja. Um monte de latas jogadas assim de qualquer maneira para o chão.
Ganda borjeço! O basqueiral que ali vai! Ganda loucura. Mas aquele pessoal sente-se bem de estar a olhar para o mar com as latas a fazer de intermediário à vista?” Passados 10/15 dias lá vem um homenzito catar as latas. “Bom, isto parece uma imagem contemporanizada das relações de sanzala. Bonito serviço! Bonito serviço! Este pessoal gosta de ter criados. Tá bonita a história! E o man nem se dignou a amontoar as latas. Nãããã tudo à brava. Espera aí! Deixa-me olhar para o relógio. Que dia é hoje? Maaaan 27 de Dezembro de 2012. Caramba! Será que também há quem venha com uma folha de palmeira fazer ventinho no meu pescanhoço? Dava jeito! Mas a escravatura ainda não acabou, somos todos escravos dum sistema on line, off line, on life, off life. Bom, talvez não seja de estranhar que haja quem faça do seu ganha pão catar lata, mas é mesmo necessário que o outro seja um burjo, um cafetão? Bom, dadas as circunstâncias...”

O homem depois olha o mar. Lembra-se do seu amigo que acabou de saber que faleceu. Sentiu uma guinada no peito. Decide caminhar à beira mar. O homem chora como um menino. Chora e chora. Não sabe se chora pela morte ou se chora pela vida gatufunhada e sinuosa do seu amigo e colega. Chora pelos momentos de cumplicidade que juntos viveram e pelo azedume e rasteiras que o seu colega e amigo lhe pregou. Rasteiras que algumas vezes colocaram-no vai que não vai para ser dispensado dos serviços prestados. Despedir é forte e não é nada agradável colocar as coisas nesses termos...

O homem chora e depois de se sentir mais aliviado uma ideia assalta-o:” Em que condições o seu amigo e colega, prestador de serviços dispensáveis quando não coadunáveis com os interesses da empresa, terá levado a sua doença até ao fim até que um último sopro o fizesse sucumbir?”
O homem continua a caminhar à beira mar. Tenta convencer-se que talvez almas caridosas, como a do funcionário da repartição que clicou emitir ao fim dum bom par de horas, tivessem tido a ombridade do apoiar efectivamente a si e à sua família. O homem tenta não pensar no que é quase óbvio, mas que poderia não ser. Tenta se descartar dum mal estar, duma raiva que não quer que o enloqueça. O homem dá mais umas passadas, depois dá um mergulho, olha para a lua e para as estrelas e fala:”Até já Zé, apesar de todos os encontros e desencontros que tivemos nesta vida.” O homem depois faz silencio e do fundo do seu peito fala; “ E se houver outra e quem sabe se nos encontrarmos pode ser que seja diferente e mais leve.”
A piu Br, 2.01.2012

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