Sentado
em frente ao mar, há horas tentando preencher uma nota fiscal
eletrónica. “Caraças do sistema!! Obrigam-me a entrar nele, ao
menos que funcionasse! Mas o que é que é agora? Mas dá erro em
quê? Eu preenchi tudo direitinho! E volta atrás! O messa! Mas o
gajo tá a pôr a primeira cidade da lista! Mas não foi isso que
coloquei!! O gajo!... O gajo!.... Se
ao menos desse para falar com alguém mano a mano! Já lá fui à
reaprtição três vezes nesta tarde, Chiça! Chaissa! Ah que podem
explicar como é que é mas não podem emitir!... Chiça! Chaissa! É
só clicar emitir. Má nada! Ma não!”
Após
horas e horas de várias tentativas o funcionário ,que está quase
na hora de sair e que também anseia por uma cervejinha à beira mar
ajuda-o, clicando no campo emitir. Uffffaa já não recebi hoje, mas
amanhã já cá canta! Nheirinho fresquinho na mão para pagar contas
pendentes1 É a vida! Eu cá também
não curto este sistema de dinheiro e burocracias. Mas olha! De vez
em quando temos que levar com esta estupada. O que vale é que tenho
o privilégio de fazer o que gosto ! E esta equipa de trabalho é
muita fixe! Dá logo outro alento! Pessoas
na boinha, escutando-se umas às outras sem levar nada
a peito,
como ataques
pessoais.
Levantando questões mas sem coisinhas e coisadas dos tais
ataquezinhos personalizados e irritadiços. Nããã nada disso.”
O
homem aliviado de ter aquela questão resolvida dá mais um gole na
sua jolinha. Olha para o mar e pensa:” Mais daqui a
nada
vou dar um mergulho. Até pode ser às dez da noite. A água tá
sempre morna.” Na areia está um casal de meia idade sentado numas
cadeiras de praia. O homem bebe cerveja atrás de cerveja. Um monte
de latas jogadas assim de qualquer maneira para o chão.
“Ganda
borjeço! O basqueiral que ali vai! Ganda
loucura. Mas aquele pessoal sente-se bem de estar a olhar para o mar
com as latas a fazer de intermediário à vista?”
Passados 10/15 dias
lá vem um homenzito catar as latas. “Bom, isto parece uma imagem
contemporanizada das relações de sanzala. Bonito serviço! Bonito
serviço! Este pessoal gosta de ter criados. Tá bonita a história!
E o man nem se dignou a amontoar as latas. Nãããã tudo à brava.
Espera aí! Deixa-me olhar para o relógio. Que dia é hoje? Maaaan
27 de Dezembro de 2012. Caramba! Será que também há quem venha com
uma folha de palmeira fazer ventinho no meu pescanhoço? Dava jeito!
Mas a escravatura ainda não acabou, somos todos escravos dum sistema
on line, off line, on life, off life. Bom, talvez não seja de
estranhar que haja quem faça do seu ganha pão catar lata, mas é
mesmo necessário que o outro seja um burjo, um cafetão? Bom, dadas
as circunstâncias...”
O
homem depois olha o mar. Lembra-se do seu amigo que acabou de saber
que faleceu. Sentiu uma guinada no peito. Decide caminhar à beira
mar. O homem chora como um menino. Chora e chora. Não sabe se chora
pela morte ou se chora pela vida gatufunhada e sinuosa do seu amigo e
colega. Chora pelos momentos de cumplicidade que juntos viveram e
pelo azedume e rasteiras que o seu colega e amigo lhe pregou.
Rasteiras que algumas vezes colocaram-no vai que não vai para ser
dispensado dos serviços prestados. Despedir é forte e não é nada
agradável colocar as coisas nesses termos...
O
homem chora e depois de se sentir mais aliviado uma ideia assalta-o:”
Em que condições o seu amigo e colega, prestador de serviços
dispensáveis quando não coadunáveis com os interesses da empresa,
terá levado a sua doença até ao fim até que um último sopro o
fizesse sucumbir?”
O
homem
continua a caminhar à beira mar. Tenta convencer-se que talvez almas
caridosas, como a do funcionário da repartição que clicou emitir
ao fim dum bom par de horas, tivessem tido
a ombridade do apoiar efectivamente a si e à sua família. O homem
tenta não pensar no que é quase óbvio, mas que poderia não ser.
Tenta se descartar dum mal estar, duma raiva que não quer que o
enloqueça. O homem dá mais umas passadas, depois dá um mergulho,
olha para a lua e para as estrelas e fala:”Até já Zé, apesar de
todos os encontros e desencontros que tivemos nesta vida.” O homem
depois faz silencio e do fundo do seu peito fala; “ E se houver
outra e quem sabe se nos encontrarmos pode ser que seja diferente e
mais leve.”
A
piu Br, 2.01.2012
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