O seu pai perdeu as fazendas. Trabalhava agora para os tios. A filha sonhava com os sapatos brancos. Tinha visto as primas caminhando com uns sapatos nos pés interrompidos por umas meias brancas, Desejava tanto uns sapatinhos brancos como os das primas. E aquelas meias brancas, alvas, de rendas cândidas!... Da roça o pai trazia à sucapa umas bananas e jabuticabas para casa. Pousava as frutas na mesa e falava para os 7 filhos:" Crianças o jantar tá na mesa!". Pousava as frutas e as mãos na mesa. Pousava os olhos tristes no chão e pensava:"Num lugar de tanta fartura passar fome parece piada de mau gosto." E navegando nos seus pensamentos sentiu o enjoo de quem viaja em alto mar: "Veio lá dou outro lado mar, cheio de sonhos, cheio de quereres. Mas não soube medir os passos. Quiz dar o passo maior que a perna. Deitou tudo a perder. Quiz fazer negócios do arco da velha, caíu em desgraça. Quiz ser mais que os seus irmãos e ficou sózinho. E se não fosse, os seus irmãos, meus tios hoje nem tinha o que colocar na mesa. "Criançada, venham comer!" E os olhos navegando, navegando e um sorriso feito para os seus filhos, assim que pulassem para a mesa. Um sorriso feito de dignidade.
"Pai! Me dá uns sapatinhos brancos iguais aos da Irene?"
Trabalhou mais do que a conta. Moendo café, moeu-se a trabalhar para de rosto encardido dizer à sua filha:
"Vamos na cidade comprar seus sapatos!" A filha sentiu uma coisa tão forte no peito que abraçou o seu pai, coisa que não era hábito.
Percorreram várias léguas a pé, sempre a subir. Na volta a filha deu em calçar os imaculados sapatos, sem meia, sem nada. Estava tão orgulhosa e grata que logo os queria experimentar. Se na descida todos os santos ajudam, também todos empurram. E num caminho de inúmeras pedras. Grandes, pequenas, redondas, bicudas. Logo, logo os pés embolharam. Logo, logo a brancura dos sapatos se enfarruscou. Logo, logo o fino couro estalou. Ficou desiludida, decepcionada. Sentiu-se morta por dentro. Talvez os seus pés não fossem feitos para andarem dentro de formas. Na verdade gostava dos seus pés espraiados no chão, sentindo a força da terra. Mas sonhara tanto com aqueles sapatos...
Anos mais tarde, quando se casou eram uns sapatos brancos que levava. Discretos para o espalhafato do seu noivo. Um homem cheio de sonhos. Sonhos de tudo fazer, de tudo iluminar. Dizia que estava em harmonia com o mundo e que bastava viver de luz para que tudo desse certo. Aos poucos, com os anos a mulher foi morrendo por dentro. Os sapatos brancos do casamento guardaddos no fundo do armário com cheiro a naftalina foram amarelecendo e entortando. Lembrava-lhes as bananas que o pai colocava em cima da mesa.
De tão cansada de tudo colocar em casa para que esta se mantivesse de pé colocou os amarelecidos e deformados sapatos em cima da mesa. Falou para o marido:"Já que não é só da luz que vives tens aqui os meus sapatos para te degustares e viveres em harmonia contigo mesmo. Quanto a mim, vou procurar a minha luz e a minha harmonia do outro lado da porta, pois de tantas vezes em olhar para a janela conclui que voltar a morrer por ti é desperdício de luz. Mesmo que não encontre harmonia do outro lado da porta, pelo menos fugirei do seu engano. E talvez me encontre nas descidas de pedras redondas e bicudas."
a Piu
br, 14 de Outubro de 2012
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