quinta-feira, 25 de outubro de 2012

CINZAS

Imagem: Inês d'Espiney






“Está a arder! A biblioteca está a arder!”
As  suas pernas lançaram-se no espaço. Ruas, ruelas, ladeiras, avenidas lentas de olhos pousados nas montras.
Do outro lado do rio chamas. Muitas chamas.

E as pernas rompendo o espaço. O elástico preso no braço, comprimindo-lhe a pulsação. Atabalhoado tropeça sobre si próprio. Alguém lhe cospe em cima do rosto. Entre o nariz e a boca. Um cheiro nauseabundo. O mesmo cheiro das lágrimas do seu pai. Lágrimas de vergonha. Aquelas lágrimas que lhe cairam no autocarro quando alguém passou por eles e proferiu palavras de desprezo, de repugnância, de dor e raiva.

Correu. Atirou-se ao rio para mais rápido chegar. Foi contra um ice berg. Extasiado que estava com a vista sobre Lisboa, que não se cansava de apreciar. Foi contra um iceberg. Um iceberg mesmo no meio do rio Tejo. Policiado estava para que ninguém o derretesse ao toque de calor humano. Porém, de pulseira no braço, que lhe suspendia a pulsação, o seu toque era frio. Gélido. O seu lábio estava roxo de frio. E esbraçejou cada vez mais até alcançar a margem.

As chamas eram cada vez maiores. Subiu escadas de pedra. Desceu escadas de madeira. E deslizou pelas escadas em caracol de ferro forjado.
Do lado da cabeça deitada do seu pai estava uma garrafa de uisqui. Um jornal semi queimado onde ainda se podia ler em letras garrafais:”A EUROPA É UM HOTEL DE LUXO MEDÍOCRE”. Tentou, desepera e inadevertidamente, apagar as chamas vertendo a garrafa. Num sopro brusco as chamas avolumaram-se.

Cinzas muitas cinzas como uma almofada de penas desfeita no ar.

Chorou de raiva, de tristeza, de alívio, de raiva de sentir alívio, de tristeza de sentir raiva.

Encostou-se a uma trepadeira que se insinuava pela parede da antiga cadeia. Fumou cigarro atrás de cigarro. Compulsivamente fumou. Primeiro em breves tragos. Depois, num longo e demorado bafo fumou um cigarro duma vez só. A cinza do cigarro pendente entre os dedos, apontando para o chão. Com o cérebro oxigenado puxa de outro cigarro. Dum só trago fumou em milézimos de segundo. E pouco a pouco foi-se fumando a si próprio. Ora em breves tragos. Ora em longos e demorados bafos.
Ainda teve tempo de olhar ao longe e perceber um resto quase ínfimo de iceberg. Aquilo que restava do mesmo. Pois não havia policiamente que valesse ao toque humano.

A piu
Br,25 de Outubro de 2012

Sem comentários:

Enviar um comentário