As pernas cresceram
desproporcionais ao corpo. O corpo desengonçado enrolava-se no banco
de trás do autocarro. Fechava os ombros e escondia a cabeça mo meio
debaixo duma boina maior que a sua cabeça. Assim que ele se
aproximava as pessoas afastavam-se. Sentia prazer em transmitir
repugnância, assim como sentia repugnância das verdades absolutas
praticadas pelo seu pai em nome da união do proletariado e do
campesinato. Essa cegueira em prol do que deveria ser cegava-o de
revolta. Para se afirmar escolheu o outro lado da vida, o lado escuro
onde a lua sufoca o sol. E enquanto caminhava um uivo profundo e
surdo vibravam nos seus movimentos direccionados ao nada. Até que
foi cair redondo de ombros encolhidos com a cabeça dentro do seu
peito na fossa. Uma fossa tão exequerável que as pernas
desproporcionais lutaram para sair.
Uma porta fechada na
cara. Bem no centro da cara. Choro, murmúrios do outro lado. “Vai-te
embora. Vai-te embora. Não voltes.”
No meio do nada. No
meio da avenida do nada ficou. Vazio. Perdido. As suas pernas
desproporcionais bambalearam. Caiu. Tentou levantar-se, Voltou a
cair. Vazio. Cheio de dor. Duma dor tão profunda que nem um uivo
surdo saía. Estrangulado se ergueu lentamente com todas as forças
que podia ter. Vagueou pela a Avenida do Nada. Desembocou num beco
onde o sol batia. Fechou os olhos para sentir o sol sobre o rosto.
Alguém o beijou prolongadamente. Quando abriu os olhos não viu
ninguém. Entrou numa outra rua que aparentemente não era um beco,
pois desembocava num baldio. Caminhou de olhos abertos. Beijou alguém
no pescoço e de seguida empurrou antes que quando olhasse à sua
volta se sentisse novamente sózinho. Várias ruas, vários becos,
vários beijos. Uns mais longos que outros. Mas continuava de peito
vazio num uivo que agora saía aos soluços, mas na mesma
estrangulado.
Quando nos seus olhos
outros olhos se pousavam vacilava, mas não fugia. Aos poucos os
olhos amoleciam navegando, navegando. Navegando à deriva procurando
um porto de abrigo.
Mais tarde. Muito mais
tarde, quando o seu uivo já saía mais cadenciado encontrou um porto
de abrigo. Feliz ficou. Muito feliz ficou. O seu peito abriu e a sua
suas pernas , a sua cabeça, o seu coração enrolaram-se nesse porto
de abrigo. Se as suas feridas sararam não se sabe. Mas muitas
criaram crosta.
Uma das crostas saltou.
Talvez fosse a crosta que ligasse a parte direita à parte esquerda
do coração.
Deixou-se ir.
Navegando, navegando em si mesmo mas com um porto de abrigo ou vários
portos de abrigo que o ancoram à terra, mesmo deixando-se ir.
Navegando, navegando. Até levantar voo.
A piu
br, 24 de Outubro de
2012
imagem: Inês d'Espiney
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