quarta-feira, 24 de outubro de 2012

PORTO DE ABRIGO


As pernas cresceram desproporcionais ao corpo. O corpo desengonçado enrolava-se no banco de trás do autocarro. Fechava os ombros e escondia a cabeça mo meio debaixo duma boina maior que a sua cabeça. Assim que ele se aproximava as pessoas afastavam-se. Sentia prazer em transmitir repugnância, assim como sentia repugnância das verdades absolutas praticadas pelo seu pai em nome da união do proletariado e do campesinato. Essa cegueira em prol do que deveria ser cegava-o de revolta. Para se afirmar escolheu o outro lado da vida, o lado escuro onde a lua sufoca o sol. E enquanto caminhava um uivo profundo e surdo vibravam nos seus movimentos direccionados ao nada. Até que foi cair redondo de ombros encolhidos com a cabeça dentro do seu peito na fossa. Uma fossa tão exequerável que as pernas desproporcionais lutaram para sair.
Uma porta fechada na cara. Bem no centro da cara. Choro, murmúrios do outro lado. “Vai-te embora. Vai-te embora. Não voltes.”
No meio do nada. No meio da avenida do nada ficou. Vazio. Perdido. As suas pernas desproporcionais bambalearam. Caiu. Tentou levantar-se, Voltou a cair. Vazio. Cheio de dor. Duma dor tão profunda que nem um uivo surdo saía. Estrangulado se ergueu lentamente com todas as forças que podia ter. Vagueou pela a Avenida do Nada. Desembocou num beco onde o sol batia. Fechou os olhos para sentir o sol sobre o rosto. Alguém o beijou prolongadamente. Quando abriu os olhos não viu ninguém. Entrou numa outra rua que aparentemente não era um beco, pois desembocava num baldio. Caminhou de olhos abertos. Beijou alguém no pescoço e de seguida empurrou antes que quando olhasse à sua volta se sentisse novamente sózinho. Várias ruas, vários becos, vários beijos. Uns mais longos que outros. Mas continuava de peito vazio num uivo que agora saía aos soluços, mas na mesma estrangulado.
Quando nos seus olhos outros olhos se pousavam vacilava, mas não fugia. Aos poucos os olhos amoleciam navegando, navegando. Navegando à deriva procurando um porto de abrigo.
Mais tarde. Muito mais tarde, quando o seu uivo já saía mais cadenciado encontrou um porto de abrigo. Feliz ficou. Muito feliz ficou. O seu peito abriu e a sua suas pernas , a sua cabeça, o seu coração enrolaram-se nesse porto de abrigo. Se as suas feridas sararam não se sabe. Mas muitas criaram crosta.
Uma das crostas saltou. Talvez fosse a crosta que ligasse a parte direita à parte esquerda do coração.
Deixou-se ir. Navegando, navegando em si mesmo mas com um porto de abrigo ou vários portos de abrigo que o ancoram à terra, mesmo deixando-se ir. Navegando, navegando. Até levantar voo.

A piu
br, 24 de Outubro de 2012


 imagem: Inês d'Espiney

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