sábado, 29 de dezembro de 2012

EM SURDINA

Estava estendido no chão. O peito nu de pêlos brancos contra o chão. Um chão insalubre.

Olhava de esguelha para as mãos. Umas mãos rugosas, curtidas pelo tempo.Ohava, voltava a olhar e não encontrava explicação.

O gaiato andava por ali a espassarinhar. O raça do gaiato não parava de atiçar a vaca que por ali andava a ruminar. A vaca foi para lá da cerca. Não havia jeito maneira da teimosa da vaca voltar ao pasto que lhe era destinado. Assim que que a encontrou encurralda entre uma pedra e uma árvore deu-lhe um soco mesmo no meio dos olhos. Em instantes a vaca desfaleceu. Surpreendido Alfredo abeirou-se da bicha. Estava morta. Alfredo chorou. A melhor vaca leiteira que tinha. Continuou a chorar. Olhou para as mãos. Nem uma pinga de sangue. Um soco seco arrumou com a pobre da bicha. Naquele instante percebeu o carinho que sentia por ela. aaaahhhh deixa p'ra lá! Mariquices de mulher! Temos carne para o ano inteiro. Com mulher e sete filhos choraminguiçes é para quem pode, não é para quem quer.

O raça do miudo não tem tino!! A quem foi sair? os outros andam ali nos eixos, mas este não há quem o segure. Sempre aos pulos e a rir! Como se os tempos fossem para risotas!...

E não pára! Mas tu queres ver?! Mas queres ver mesmo? Voltas a abrir a cancela para as vacas sairem e levas um puxão de orelhas!! O moço não quis fazer caso. Desta vez não era uma só, eram todas. A manada correu em direção ao rio. Parecia que o seu correr falava:"Estamos livres! Estamos livres!" Um bando de garças voavam na outra direção como se o seu voo falasse:"Elas conseguiram-se libertar! Estão livres! São livres como nós!"

É desta que o raça do muido vai levar umas trolitadas. O menino querido da mamã já vai ver! Por isso ele é assim!
Assim que encontrou o gaiato a sua mão grande e curtida pelo trabalho duro do campo lançou-se à orelha do rapazito. Numa torcidela seca o moço caiu no chão para nunca mais se levantar.

Foram-no buscar num dia de domingo, depois do funeral do gaiato. A familia comia amargamente grão com mão de vaca. De olhos triste e peito desfeito Alfredo pediu aos guardas a permissão de vestir uma roupa melhorzinha. Queria ser preso com dignidade. Juntou alguns haveres mum saquito de pano. No meio a foto do dia que foram todos à feira do gado comprar os sapatos anuais para dias especiais.

Sempre alegara que não tinha morto o gaiato. Que nunca tivera intenção de fazer mal ao filho.
A mulher e os filhos ai estavam na audiência com os sapatos dos dias especiais roendo os calcanhares e a alma.
O Alfredo limpava o suor com um lenço de linho. Falando para o juiz ainda limpou o ranho de um dos filhos com o mesmo lenço.
"Senhor juiz, tempo algum foi intenção minha matar o gaiato." De gestos cansados e duros continuou:" Eu só fiz isto ao meu filho." E assim que deitou mão à orelha do rapazola que acabara de limpar o nariz logo este caiu redondo no chão não voltando mais a levantar-se.

O Alfredo foi sucumbindo aos poucos na sua cela. Passados dois anos pôde ir a casa passar um fim de semana com a mulher e os cinco filhos que restava. Chegou de roupa coçada e olhos caídos sempre olhando para as mãos. Comeu a sopa de couves e feijão que a mulher preparara. Os filhos continuavam a cuidar da terra e dos animais, mas a sua ausência tinha feito mossa no sustento da casa. Apesar da rudeza dos dias dignidade era uma palavra que era levada a sério.
Alfredo voltou a olhar para as mãos. Lá fora o calor ondeava o horizonte. Olhou para as árvores que circundavam a casa. Escolheu a mais distante, mas visivel se os olhos se semi cerrassem.
Respirou profundamente, sentindo o odor da fruta que amadurecida pendia dos ramos. Tirou o seu cinto que já pouco efeito fazia na magreza que acumulara no seu outrora corpo robusto.

Elvira foi encontrá-lo com um sorriso nos lábios. Um sorriso implorando perdão.
Pediu aos filhos para a ajudarem, apesar de magro os ossos do corpo de Alfredo que outrora foram robustos eram do peso de um touro.

Nesse dia o jantar foi consumindo em silêncio. Azeitonas, pão e vinho. Um jantar em jeito de quase jejum em memória de Alfredo. Que descansasse em paz, pediu todos os seis olhando os pedaços de alho que temperavam as azeitonas.

Depois, a vida continuou. O sol nascendo, pondo-se. Épocas de plantio e de colheita. A vida continuava sem muito tempo para tristezas, apesar de que no segredo dos lencois, na calada da noite, um gemido de dor podia se escutar. Algumas vezes esse gemido era em surdina. Mas todos o escutavam.

a piu
Br, 29 de Dezembro de 2012

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