CASA DE PORTUGAL
Meu
querido diário espero que continues a ser querido para mim e eu para
ti. Não fiques zangado com tanto desabafo que trago no regaço e no
cachaço. Meu querido diário tantos segundos, minutos, horas, dias e anos
para viver. Para viver e me
surpreender com aquilo já lá estava ou
com aquilo que passou a estar. Com aquilo que já lá estava e que nunca
se reparou ou que se reparo, mas normalizou-se. Mais os dias são
circulares, assim como os segundos, os minutos e as horas. Ainda bem que
existes meu querido diário. Ainda bem que existimos aqui. Aqui ou na
Babilónia ou na Estónia, na Macedónia ou na Califórnia.
Não te
contei, meu querido diário, mas ontem entrei numa daquelas casas de
Portugal que existem no estrangeiro. Não te zangues se cá dentro, no meu
regaço, a coisa fica um cangaço. Mas meu querido diário eu entro numa
casa daquelas porque supostamente tenho de falar com um tal de Cônsul.
Lá vou eu. O cônsul está doente há três meses e não tem ninguém para o
subestituir. Dou pulinhos de contentamento! Agora sim estou numa casa
digna do seu nome. Não me leves a mal, mas eu cá sinto um fru fru no
plexus solar do meu ser quando entro em Embaixadas Poruguesas, Centros
Culturais Portugueses mais as ditas Casas Portuguesas. Seja em Cabo
Verde, França, Dinamarca, Brasil. Garanto-te meu querido diário que
todas elas criam em mim uma sensação de falta de pretensa.
Posso desabafar contigo?... Sinto-me, por vezes, decepcionada de ter a
nacionalidade que tenho. Não me sinto representada a todos os níveis.
Jurídicos, culturais and so on. O marasmo desses lugares fazem-me ter
vontade de fugir e levar comigo a minha história pessoal fantasiada ou
não aos quatro ventos. O meu pai é sueco, refugiado chileno exilado nos
anos 70. Minha mãe francesa, de origem marroquina, ativista do Maio de
68. Os dois encontraram-se no Woodstock em 69. Vieram ter a Portugal
quase quase no apogeu dos ventos de mudança. Em 73 nasci e em 74 deu-se a
festa dos cravos. O que veio a seguir tá a vista agoar. Bom, mas nasci n
um país bonito, com sol, onde se come bem e há pessoas muita porreiras,
apesar de algumas terem vergonha de serem felizes. Meu querido diário
achas que esta história é convincente?
Ontem quando entrei na Casa
de Portugal nem um elemento que me fizesse sentir em casa. Sei lá! Tem
tanta coisa! Umas garrafitas de tinto do Alentejo ou do Douro. Cheiro a
queijo da Serra da Estrela. Murais do Almada Negreiros ou invocações à
pintora Paula Rego. Opa e e que tenho tantos amigos artistas plásticos
(qual a diferença entre arte e artesanato?) músicos, atores. Mas bom,
vamos lá pelo óbvio. Uma guitarrada portuguesa do Carlos Paredes. Madre
Deus... A bela cerâmica tradicional ou urbana que se faz por todo o
país. Nãããã! Nada disso. Apenas um painel de azulejos com a Nossa
Senhora de Fátima e os três Pastorinhos e uma grande loja de rendas do
Ceará, por sinal bem bonitas. Mas quando eu entro nestas instituições
ditas portuguesas sinto desalento. É o espelho dum país que não valoriza
quem lá nasceu, quem lá cresceu, quem algum dia quis que o seu país
fosse diferente de valores provincianos e caducos (atenção meu querido
diário! Descentralização não é o mesmo que provincianismo! Posso viver
no campo e ser cosmopolita.)
Meu querido diário tantas vezes
confirmo que quase ninguém no planeta terra conhece o que se faz ,
pensa-se e cria-se em Portugal. Portugal não é só fado nem Fernando
Pessoa. Mas, meu querido diário, temos sido educados para não nos
valorizarmos. E eu até acho que se aquela história dos pastorinhos
convenceu tanta gente a minha acerca das minhas descendências também
convence. Pelo menos o meu encontro com os trópicos está realizado. As
minhas descendentes trazem Angola e Brasil na derme. Nesse caso posso me
sentir do mundo. Posso não posso? Claro que posso! Conta as viagens de
inter rail e afins. Os tais dos seminários na Europa. Sim, porque em
Portugal o pessoal não pertence realmente à Europa. Porque lá fora é que
é! Mas olha, gosto de ser quem sou. Não tenho problemas nenhuns de
abdicar, por momentos, do meu sotaque para fazer-me compreender. Como
uma senhora que apontado para um aterro dizia:”Tudo isto aqui é sonho. O
que está cá dentro da nossa cabeça é que é real.” No fim de contas as
fronteiras somos nós próprios que as criamos dentro de nós. Mais coisa
menos coisa. Não achas meu querido diário?
Música: Deolinda, banda portuguesa com a vocalista Ana Bacalhau
A piU
Br, 11/12/12
deolinda - garçonete da casa de fado (live @ cinema são jorge, lisboa)
http://youtu.be/QbZ-UvBrlCs
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