terça-feira, 10 de março de 2020

E VOCÊ VAI LER O MEU BLA BLA BLA?

Álvaro Cunhal " Desenhos da prisão" 1951- 59

" A história única cria esterótipos, e o problema com os esterótipos não é que sejam mentira, mas que são incompletos. Elas fazem com que uma história se torne única história. (...) As histórias importam. Muitas histórias importam. As histórias foram usadas para espoliar e caluniar, mas também podem ser usadas para empoderar e humanizar. Elas podem despedaçar a dignidade de um povo, mas também podem reparar essa essa dignidade despedaçada. (...) Eu gostaria de terminar com esta ideia: quando rejeitamos a história única, quando percebemos que nunca existe uma história única sobre lugar nenhum, reavemos uma espécie de paraíso. "
Adichie, Chimamanda Ngozi," O perigo de uma história única". Companhia das Letras SP: 2009.
Escutar alguém horas a fio é uma bela de uma disposição. Terá que fazer muito sentido. Porém, estarmos cientes que aquela fala é um ponto de vista entre outros tantos é bastante importante. Pessoalmente prefiro escutar uma Márcia Baja, do budismo tibetano, ou uma Monja Coen nos fones enquanto faço outras tarefas, ou até sentada numa cadeira de olhos fechados do que ser fiel a um comício. Há gostos para tudo e o meu é esse, o que não é uma verdade absoluta. É o que faz sentido para mim. Para outros é ir ao culto, à missa, às reuniões da comunidade de diferentes linhas ideológicas e espirituais. Desde que as pessoas sintam que aquilo as ajuda a serem mais leves e que podem estar disponíveis de coração umas para as outras - Ótimo.
No meio deste grande desafio que é viver o que ( me) pega são as relações de poder, por melhores que possam ser as intenções.Por exemplo, eu nunca me detive num comício da Cunhal, esse líder carismático dos komunas. Na hora sagrada (  ihihih) do comício na Festa do Avante, eu aproveitava para visitar a Bienal de Artes ou ir até à grande livraria. Estava mais vazio e assim era muito bom. Fico um pouco ansiosa com muita gente junta onde o poder de movimentação é bastante reduzido. Fobia? Talvez. Mas achava bonito aquela massa de gente erguer o punho e cantar " Avante camarada avante junta a tua à nossa voz". Eu também cantava, mas de longe. Na minha vibe. Adorava olhar as massas, mas sabendo que sou uma sujeita com vida própria. Enfim, a intuição saiu-me cá uma maluca. Essa aí sempre me diz para não estar só por estar e pensar e sentir pela minha própria cabeça, porque se não corro o risco de balir em vez de refletir. E como quem está ou esteve por perto desses partidos, sabemos que questionar não é algo muito bem vindo e até rechaçado. Logo, aquele singelo livrinho do Sartre " Mãos sujas" foi um pequenito aviso para não ir atrás cegamente de ideologias aparentemente bem intencionadas. Depois a Doris Lessing, prémio nobel da literatura 2007, foi o último balde de água fria se é que ainda não estava ciente das fraquezas das boas e grandes nobres causas que se aproveita do campesinato e operariado para ser déspota.
Isto para dizer o quê? Que eu sempre me perguntei qual a versão da História nos é contada na escola. Isto é, qual a História oficial que é contada pelo ponto de vista das oligarquias. Por outro lado, existem oposições às oligarquias que pretendem ser as protagonistas duma história multi facetada. Por exemplo, quem conhece a História contada pelo ponto de vista e pela voz dos camponeses, dos operários que se mobilizavam mas não eram komunas, das mulheres, dos indígenas e negros etc etc?
Quando eu escuto no Brasil esta redutora, por isso linear, frase: " Vocês portugueses vieram nos colonizar. E vocês hoje são ricos à nossa custa!" Isso é constrangedor. Porquê? Sem dúvida que o território que hoje se chama Brasil foi colonizado por portugueses. E quem eram esses portugueses? A coroa, a nobreza e o clero. Bom, a nobreza não tinha poder nenhum. Era só fachada duns bimbos, bregas, cafonas que compravam títulos e estavam sempre endividados. Leia-se o Gil Vicente. Portugal ser rico... Uma rica dívida externa que quem paga é sempre os cá debaixo. Siga que não quero falar da Troika e outras manobras neo liberais.
Porém quando uma oligarquia dum povo oprime outro povo é porque já oprime, explora o seu próprio povo, abafando, perseguindo, aniquilando quem se opõe. Todos os regimes autoritários e totalitários o fazem. Sejam feudais, de extrema direita ou sejam capitalismo de estado, que era o caso do Bloco de Leste. Então, nós conhecermos a nossa história, nacional, familiar, individual já é um grande passo. Conhecer a história dum outro país que colonizou há 200 anos atrás é igualmente importante, principalmente a luta do campesinato, do operariado, dos trabalhadores precários mesmo que qualificados. Isto para poupar uma série de mal entendidos e dissabores e sermos o mais justo possível. Ou pelo menos não sermos injustos, e até boçais com a nossa desinformação que achamos que está certa. Isso chama-se ignorância. Opinar requer estarmos informados por várias fontes e termos a honestidade de não reproduzir lugares comuns para assim não nos responsabilizarmos pelo nosso próprio país e vida. Podemos não concordar em muitos pontos uns com os outros, mas quando sabemos quem somos olhando para os nossos orgulhos, vaidades, confusão mental fica muito mais simples de dissolver essa negatividade e assim sermos mais empáticos uns com os outros.
Por isso adoro escutar aquelas duas senhoras acima mencionadas. Não tentam impingir nada a ninguém e sim alertar que a revolução, a transformação começa dentro de nós. A revolução pelo Amor sem fofuras e sim com auto cuidado e cuidado com o próximo. Sem fofuras, porque olhar a nossa negatavidade e sombras é um ato de coragem que de fofura nada tem. Seja a mudança que quer ver no mundo. O Gandhi dizia isso. E outros e outras antes do Gandhi. Mas agora as mulheres estão a ganhar mais espaço para que o patriarcado aos poucos se dissolva nas suas variadíssimas formas de se manifestar ao longo dos séculos e dos regimes.
A Piu
Campinas SP 10/03/2020
Álvaro Cunhal " Desenhos da prisão" 1951- 59

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