segunda-feira, 2 de março de 2020

45 ANOS DEPOIS DA INDEPENDÊNCIA - série ' Era mais foice '


" Se a Europa me ensinou alguma coisa foi a de que não existe nada mais assustador do que um africano a atravessar-lhe as fronteiras. " Escondam o vosso dinheiro, escondam as vossas filhas, que os pretos estão a invadir-nos o quintal." Oiço-lhes os pensamentos quando nos veem a aproximar do guichê e lhes entregamos o nosso passaporte do terceiro mundo.
(...)
Como muitos adolescentes angolanos na diáspora, a minha educação musical foi obtida dentro de uma discoteca de kizomba (...) Durante anos, aqueles clubes cumpriram o papel de centros culturais, o lugar de todas as iniciações, os únicos sítios onde podíamos ser nós próprios. Dentro daquelas quatro paredes, até o sol nascer, deixávamos de ser imigrantes, bolsistas com anuidades da faculdade em atraso, ajudantes de pedreiro, empregados de mesa, guardas-noturnos ou simplesmente desempregados a kunungar no sofá de um parente distante. Éramos só angolanos a dançar as canções feitas por nós, para nós e sobre nós."
Epalanga, Kalaf " Também os brancos sabem dançar, romance musical", Todavia SP: 2017.
Aquele Natal de 2004 foi significativo. Abalou com os meu hábitos familiares por ver-me no meio duma outra família com outros hábitos. Nem melhores nem piores e sim diferentes. Tive a oportunidade de presenciar em contexto micro o que significava a guerra civil angolana naquele sétimo ou oitavo andar dum, dos muitos prédios do Rio de Mouro que segundo o Kalaf é a maior região de diáspora africana não somente na grande Lisboa como em Portugal.
A noite já ia longa e, como qualquer festa não só angolana como portuguesa e outras nacionalidades, a bebida faz parte da ementa. Ali foi o indicativo primeiro de: se comer e beber até cair para o lado não converse sobre politica ou então não convide para a sua casa ou não aceite convites de quem tem ideias muito diferentes. Pode dar para o torto e até pode ser trágico! Dois indivíduos aparentemente amigos, mas um pró UNITA e outro pró MPLA começaram a discutir naquela varanda em que qualquer queda seria fatal. Felizmente não aconteceu nada, mas não era só uma conversa de dois beberruns. Havia uma revolta e uma dor muito profunda. Não eram somente opiniões e sim dois indivíduos que poderiam ser irmãos com visões de mundo opostas e que viveram uma guerra civil de quase trinta anos, depois duma guerra de 12 anos com Portugal. Não era conversa de opinião, não. Era mais profundo e doloroso que isso. No meu lugar de portuguesa, branca, nascida seis meses antes da queda do fascismo e por consequência do fim da guerra com África e inicio duma Democracia bebé não poderia ter nem ideia plena do que se passa no coração dum moçambicano, dum guineense, dum cabo verdiano, dum angolano da minha idade como o Kalaf que está na foto e que não conheci pessoalmente, e do o Bruno, o Naiabingue e outros com quem convivi e até vivi.
Encontrei este livro numa biblioteca do Sesc de Campinas e é um mergulho à " minha" Lisboa dos anos 90 e 2000 pelo ponto de vista dum emigrante angolano. Muito bom. Próximo livro a ler do mesmo: " O angolano que comprou Lisboa ( por metade do preço)" Ahaha MUITO BOM!!!!! É ISSO AÍ!
Enquanto isso vou dar continuidade a essa série, para dar aquela apaziguada na bufonaria em relação à esquerda gourmet branca brasileira que acha normal haver baixas (?!?!?!?) no Chile neste momento como aconteceu nos anos 70. Só tenho é curiosidade em saber se essa alma penada teria coragem de fazer parte dessas baixas e ir desta para melhor. PRONTO! ACABOU A CONVERSA! Até ao próximo texto sobre este assunto que me é querido e caro: diáspora africana em Portugal na pós independência.
A Piu
Campinas SP 02/03/2020


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