O pó do caminho que se levanta. A bicicleta passa levantando a poeira. As folhas brilhando ao sol. Os verdes, os múltiplos verdes que se cruzam. E a poeira castanha da estrada. Uma nuvem que se funde com a luz e a bicicleta que passa, Uma roda que corta a nuvem. Pedalando cadenciadamente, subindo a estrada. Uma caixa de madeira suspensa amarrada com uma corda. Uma abóbora castanha em forma de courgete ou uma beringela esguia e rígida com cor de jacaré de pantanal abraça-se à caixa, defendendo-a por instantes das amarras. E os pedais rodam cadenciadamente. O cabelo branco junto às fontes não escurece à passagem pela nuvem de pó. Cumprimenta o velho vizinho que de feições japonesas planta brócolos brasileiros em vez de japoneses. Será que o vizinho de traços nipónicos não gosta de brócolos japoneses pois a sua forma lembra a bomba de Hiroshima? No seu quintal também não existem couves-flor. Alvas alfaces espreitam da terra, Salsa. Couves. Nas folhas podemos embrulhar os nossos sonhos, sacudir os nossos medos. Numa couve-flor ou nuns brócolos os caminhos podem ser mais sinuosos. O vizinho de traços nipónicos cumprimenta o homem que pedala cadenciadamente, transportando uma caixa de madeira suspensa com um legume que lembra um mutante com cor de jacaré de pantanal. O homem para e põe-se à conversa com outro homem. Meninas e moças no caminho de cabelo solto acompanham um namoro duma outra que dá risadinhas enquanto segura o telefone. O celular. O telemóvel. No virar da esquina uma grande e gorda lua surge do horizonte próximo do prado. Um cavalo come. Uma lua tão próxima lembra-nos que há um universo imenso. Um cosmos infindável. “Onde acaba o fim? Qual é o tamanho do infinito?” pergunta a criança. Mais tarde a lua sobe. Os raios de sol já namoram com a sua alvura. Anoiteceu. Será que daqui a uns tempos é possível ligar para alguém que viva na lua? Ainda hoje a lua estava tão próxima do prado, mesmo junto ao cavalo que pacientemente mastigava. Ainda hoje a menina ria junto do bocal do telefone e a lua tão próxima.
O homem continua a pedalar cadenciadamente. Dentro da caixa, o homem leva o escuro. O escuro da noite escura. Dentro do escuro navegam os mistérios da vida. O mistério da beleza. O mistério do terror. O mistério do amor e do ódio. Da beleza duma flor no ar que causa um espanto sinistro. O mistério duma roda que roda cadenciadamente levantando a poeira da estrada. Uma roda que reflectida no céu se torna uma lua. O homem para. Encosta a bicicleta a um cacto. Tem cuidado para não se picar. Do bolso tira um canivete. Perfura o cacto. Do outro bolso tira um canudinho e sorve o leite do interior da planta. Da bicicleta inclinada o escuro espreita da fresta da caixa. O homem coloca a corrente da bicicleta. As suas mãos ficam negras de óleo. Negras como a noite escura. Passa as mãos pela areia. A gordura sai, mas o negro como o negro do escuro da caixa permanece. Volta a pegar na bicicleta. Endireita-a. Dum impulso volta a equilibrar-se nas duas rodas. Atravessa a nuvem de pó numa pedalada cadenciada com o olhar fixo nos mistérios que transporta dentro da sua caixa, que suspensa é poupada, por instantes, da corda que a segura ao equilíbrio efêmero da bicicleta.
A Piu
br, 30.09.2012
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