quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

ABRIR AS PORTAS DA CONSCIÊNCIA - eu sou a bruxa portuguesa que re surgiu das cinzas

" Foi como se Portugal
P'ra seu bem e p'ra seu mal
Andasse em busca dum final
P'ra começar
Ávida violência
Reverso da inocência
Sal da inconsciência
Que há no mar
Império tão pequenino
De portulano caprino

(...) Tentemos então ver a coisa ao contrário
Do ponto de vista de quem não chegou Pois se eu fosse um preto chamado Zé Mário
Eu não era quem eu sou
Os navegadores chegaram cá a casa
E foi tudo novo p'ra eles e p'ra mim
A cruz e a espada e os olhos em brasa
Porque me trataste assim?
Não é culpa nossa se quem p'ra cá veio
Não se incomodou ao saber do horror
A história não olha a quem fica no meio"

José Mário Branco - O canto dos Torna Viagem

Dois mil e dezanove foi um ano repleto de viagens por vários festivais de teatro no Brasil com passagem pela Colômbia sempre com porto de abrigo em Campinas, no Estado de São Paulo, último reduto a abolirem a escravatura no continente americano. E no mundo? E o que é a escravatura? Campinas, lugar de memórias de dor onde hoje existe uma movimentação de cura espiritual com várias linhas de trabalho. Entender o que se passou e o que se passa é tomar consciência para novas formas de pensar e agir. Uma peia é um estado físico e emocional não muito confortável, tampouco agradável que podemos sentir quando abrimos portais do subconsciente e inconsciente. Da última vez que estive em Salvador da Bahia, aquando das comemorações dos 30 anos de teatro lambe lambe criados pelas queridas Denise Santos e Ismine Lima, vivi umas peias malucas, feiosas. Um cansaço profundo, muitas tonturas, tristeza e angústia. Depois de algumas horas de sono a voz interior dizia:
 " Segura a onda, peão!! Olha para isso e estás aqui para sentir muito pela dor gerada anteriormente, fruto da ignorância e avidez, e fazer diferente." Situações surreais aconteceram desde o pelourinho até à hospedagem: um cachorro que vem do nada e me morde, uma mulher, moradora de rua, que me dá uma massagem no meio da rua debaixo da chuvinha parece que não molha mas molha, para abrir o meu plexus solar segundo ela. E um cansaço enorme. como se o chão gemesse e gritasse por socorro.

Pois é, alguns dirão que é viagem. Tá bom o cartesianismo, a racionalidade eurocêntrica tem das suas resistências. Fazer o quê? Não nos deixarmos arrastar com esses ceptismos que castram a intuição como um mecanismo de controle tão bem engendrado desde a Inquisição até ao ceptismo que também é uma ordem ideológica tal qual uma instituição religiosa.

Ali em Salvador da Bahia, principalmente no centro histórico cuja arquitectura é obviamente semelhante a uma qualquer cidade de Portugal, mas com as portadas maiores e o turismo gourmet segue o padrão do gosto europeu vi uma "pequena" grande diferença. Enquanto em Portugal, principalmente hoje que virou um parque temático uma imitação de si mesmo com aquele adorno de saudosismo pelo império português " que deu novos mundos ao mundo", em Salvador a memória da história é de resistência quando o Olodum sai às ruas, a povoação local que deambula pelas ruas caminha ombro a ombro com o candomblé, umbanda e outras práticas de matriz africana . De facto, como portuguesa, quando revisito hoje Portugal ( não vou há dois anos) é um pouco deprimente quanto ao alarido mercantil gourmetizado em torno dum acontecimento histórico- colonialismo e imperialismo- até hoje tem um impacto bastante forte, seja no Brasil seja em África. Eu faço parte dessa História, mas faço do lado de cá da História onde os encontros de mundos, culturas, de seres humanos e bio diversidades são auspiciosos pelo respeito de chegar na casa de alguém, no território onde já estão lá outros seres e vir com suavidade sem achar que é tudo à brava, é tudo nosso e que os outros têm mesmo é que nos servir à força. Chegar aos lugares e estar ao serviço do abraço amistoso, curioso de saber quem é o outro para criar alianças horizontais e não verticais.Aliança empáticas de nos sabermos seres transcendentes.  E assim a peia se desfaz. Mas agora só pergunto: os brasileiros que hoje estão em Portugal o que pensam acerca de tudo isso? De toda essa exaltação moforenta, bolorenta, de alguns portugueses. Não, todos, claro. Mas uma grande parte. Fico curiosa. Farão piadas internas ou compactuam com essa narrativa ou nem sequer se questionam como muitos nunca se questionaram sobre a comissão da verdade e outras coisitas más lá da época do Getúlio e dos Prestes.

A Piu
Campinas SP Brasil 08/01/20

foto tirada no Pelourinho Salvador durante a comemoração dos 30 anos do Teatro Lambe lambe 2019



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