quarta-feira, 21 de novembro de 2012

A vida aos traçinhos

(...) Debaixo do pano está uma gaiola. Dentro da gaiola está um pássaro. Dizem que canta mais quando está tapado com um pano. Pudera! Canta porque quer sair dali. Não vê o mundo debaixo do pano. Canta um canto bonito. Ninguém desconfia que é um canto triste. E quanto mais canta mais o pano permanece direito, engomado sobre a gaiola. Um dia ele lança um grito tão agonizante que decidem colocá-lo numa gaiola maior. E lá vai ele, esse tal de canarinho (ou piriquito?). Nunca deu para perceber se era um ou outro, sempre ali por debaixo do pano bordado a ponto cruz!

Lá vai ele transferido para uma gaiola suite. Por momentos pode ver o mundo aos traçinhos. Mas vê. Não canta. O tal do passarinho está estupefacto com tal surpresa. Leva algum tempo para ser novamente tapado. O pano está a acabar de ser bordado. Por não cantar, rápidamente lhe colocam um pano que não tapa por inteiro a gaiola. Canta um pouco. Um dia Balbina, achando-o triste por não cantar, mete a sua mãozinha na gaiola para o pegar e acariciar. Cá fora, pousado sobre a palma da mão de Balbina ele recebe os afagos dos deditos, fechando os olhos.

Volta a pô-lo dentro da gaiola. E no instante em que está a mudar a água e a alpista o pássaro de pequeno porte pousa as suas patitas na portinhola, bate as asas e sai voando às cegas. Esvoaça pelas paredes e pelo teto da marquise, indo contra as coisas. Até que as suas asas levam-no em direcção à janelita entreaberta. E sai voando aos tropeços. O mundo que conhecera debaixo do pano e mais tarde aos traçinhos apresentava-se agora grande, libertador e assustador.

Deu-lhe sede. Bebericou duma poça escura no meio da estrada. Passou um carro por cima dele, mas nada lhe aconteceu. Cansado deixou que a fome o paralisasse. O seu coraçãozinho não resistiu muito mais tempo. Depois dum profundo suspiro pousou a cabeça como poisava dentro da sua gaiola e fechou os olhos.

Balbina chorou muito. Sentiu-se culpada de ter deixado fugir o passarinho. Tentou convencer-se que ele estaria bem. Estaria livre.
Para limpar a alma saiu para a rua deixando que a chuva a encharcasse. O ar estava quente e a chuva caindo cada vez com mais força. Abriu os braços. Riu-se por se sentir livre, entregue às intempéris. Havia um bafo quente no ar, mas de repente começaram a cair pedrinhas. Granizo. Pedrinhas de gelo. Parecia gelo picado a cair do céu.

Voltou para casa com a roupa, o cabelo colados ao corpo. E a sua alma mais aliviada. (...)

A piU
Br, 21 de novembro de 2012

"Historietas maluquetas da menina Balbina ou o canto da piripipiu"
imagem: Tayla Nicolleti

Sem comentários:

Enviar um comentário