A minha mãe trabalhou nos correios/ Nos correios a minha mãe trabalhou/ Quando levava a sua querida filhinha (eu) esta só atrapalhou!
E aí moçada! Gostaram da poesia? Cheia de métrica, num? Nem o Bocage se lembrararia duma rima destas! Agora falando sério... Falar dos ambientes de trabalho, das inúmeras desvalorizações do nosso e do trabalho alheio é serissimo, principalmente quando toca à dignidade do nosso sustento e dos nossos filhos para quem tem. Não dá para comparar as condições que os escravocratas impunham aos escravizados africanos com as dos trabalhadores explorados portugueses nos tempos do antigamente ( há 48 anos atrás, antes da queda do fascismo). Embora aqueles se organizavam e/ou se opunham à exploração da sua força de trabalho corriam o risco de serem presos, torturados e até mortos. Temos a Catarina Eufémia, trabalhadora agrícola portuguesa e alentejana, que foi morta com três tiros pelas costas à queima roupa em 1954 pela Guarda Nacional Republicana Portuguesa na sequência duma greve de assalariados rurais. Ela tornou-se um icone da resistência portuguesa durante a ditadura. É também importante lembrar a chacina de Beja em 1932.
O cineasta Sergio Trefaut, nascido em São Paulo em 1965 e incentivado pelo sei pai, o jornalista, Miguel Urbano Rodrigues " a passar férias no Alentejo natal para conviver com os camponeses da região mais vasta e pobre de Portugal" *. O Sergio Trefaut tornou-se cineasta e realizou um documentário em 2014 " Alentejo, Alentejo" e posteriormente uma longa metragem " Raiva" que é uma ficção baseada nesses conflitos ancestrais entre camponeses e donos da terra. Eu assisti ao " Raiva" numa sala de cinema no centro de São Paulo. Fico profundamente comovida com esse pai e filho que não renegam as suas origens, dignificando-as e mostrando-as para o mundo. Os alentejanos não foram agrilhoados, nem colocados em naus para serem comercializados como coisas que se mexem com força de trabalho que não é nem remunerada e que a sua moeda de troca são açoites, maus tratos, humilhações. Feridas profundas que até hoje revereberam na alma dos seus descendentes.
Falar da dor alheia pelo outro que a sofreu ou sofre é uma apropriação, é um ocupar o lugar de fala de quem foi mal tratado e silenciado, Receber apoios finaceiros, bolsas de pesquisa para falar de pobres, de explorados, de seres humanos de outras matrizes e descendêndencias identitárias requer ética. Essa ética é trazer esses seres humanos para o nosso projeto, eles tomarem com protagonismo o seu lugar de fala e de preferência dialogarmos sobre o que nos atravessa em comum ou não e como estarmos mais juntos duma forma empática e respeitosa. E obviamente serem dignamente remunerados.
Agradeço profundamente à roteirista e cinesata Ceci Alves, mulher negra nordestina e ao cineasta indígena Hugo Fulni-ô, a oportunidade de participar das suas oficinas dentro da programação Cine Sesc.
Seguimos escutando, observando e dialogando.
Quanto ao poema (?!) de cima, certa vez, lá pelos meus 9 anos, a minha mãe levou-me ao escritório dos correios onde trabalhava que ao que parece era um antro de mesquinharias internas, egozitos de assalariados que se chocavam. Passamos pela sala dum sujeito seu colega e eu, ingenuamente, ao ser apresentada disse:" Ah! É aquele homem que tu falas lá em casa!" Ahahaha. Ela ficou verde, livida, transparente... Depois disse-me que não era para eu comentar o que se falava em casa. Eu nem lembro o que ela falava dele... Talvez que ele fungava muito ao carimbar os papeis ou que controlava os passos dos outros colegas e queria mandar mais do que era suposto. Sei lá! Sei que enquanto puder detectar ambientes insalubres de trabalho e cair fora, de preferência com tranquilidade sempre que possivel vamos lá. Cuidar do nosso bem estar interior é fundamental, caso contrário viramos escravos de situações, condições que nos tornam algozes de nós mesmes. E isso vai-nos adoecendo por dentro até se manifestar no corpo.
Resumindo e concluindo: valorizar o trabalho de outrém, não só na palavra mas também na moeda de troca tenha esta o formato que tiver, valorizar a existência de outrém é básico mas precisamos de continuar a falar sobre isso porque existe aí uma galerada que esquece por conveniência. " Ai! Eu não percebi que você, ou tu, é uma trabalhadora, artista, mãe solo de duas filhas e que não recebe apoios do Estado do seu país e os pais das crias são totalmente ausentes." Eh pá! Vamos nos deixar de novelas , voyerismos, curiosidades da vida alheia em redes sociais, opinismo não solicitado seja de familiares, amigos e desconhecidos e vamos ser gente com mais justiça no coração e na ação. Assim seja . Assim é.
Hasta pronto!
A Piu
Br, 12/11/2021
* https://istoe.com.br/sombra-e-revolta-no-alentejo/
obs: aqui vai uma matéria sobre a atual escravatura no Baixo Alentejo/ Portugal para com migrantes https://jornalismodocumental.pt/trabalho-escravo-nos-campos-do-alentejo/
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