sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Como uma caneca vazia


Escrava caprichosa já não era tão caprichosa como antes. Separada maritalmente, vivia na mesma casa de Escravo Durão para não perder a regalia de ter os miúdos num bom colégio e para evitar falatório lá na repartição, logo agora que tinha sido promovida a chefe de secção. Escrava Caprichosa continuava a envergar boas roupas, mas as férias de sonho e os restaurantes de crescer água na boca já não estavam contemplados nas suas horas de lazer. Separados, viviam na mesma casa. Cada um no deu quarto com a sua vida. Cruzavam-se casualmente na cozinha sem falarem, sem discutirem. Cruzavam-se com cordialidade e indiferença.

Escrava Caprichosa duma coisa se podia honrar! Não se vendia! Não vendia o corpo a homem nenhum! Trocava prazer com os homens que conhecia ocasionalmente. Apenas prazer. Ser mulher fetiche e fazer dos homens seus objetos de fetiche. Houve um dia que começou a cansar-se. Afinal tinha de gerir emoções. As dela e daqueles que, inconvenientemente, lhe ligavam a qualquer hora. “Não é possível a coisa ficar mais simples?”, pensava. Tentava defender a sua liberdade, mas acabava por envolver-se. Quer quisesse, quer não.

Certa vez recebeu uma mensagem no chat. Uma declaração de amor de um amigo de infância. Uma velha paixão, admiração dele para com ela. O seu coração palpitou. O seu peito inflamou. Aos poucos, muito aos poucos quis olhar nos olhos desse amigo. E esperou. Esperou. Esperou. Encontros  marcados e frustrados. O amigo acabava por não aparecer e nada dizer. Depois deixava uns clips delico doces no mural onde um séquito de duas a três mulheres gostavam  e uma outra escrevia: I miss you, too. Escrava Caprichosa sentia as pernas fraquejarem e o um gosto metálico na garganta. O seu peito foi-se esvaziando, mas o coração teimava em palpitar. De tão cansada de esperar e já de peito vazio pousou a cabeça no teclado e adormeceu. Adormeceu a sua dor. O ecrã desligou. E não se sabe se foi um fio de lágrima  que se infiltrou no sistema ou se  simplesmente a baba que lhe corria pelo queixo abaixo, enquanto sonhava  destituindo-a do cargo de mulher gata selvagem, que avariou o computador.

Como uma caneca vazia voltava a ser ela. A só ser. Aceitando-se como um ser autónomo. Esvaziando-se para voltar a preencher-se.

A piU
Br, 17 de Agosto de 2012

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