Escrava caprichosa já não era tão caprichosa como antes.
Separada maritalmente, vivia na mesma casa de Escravo Durão para não perder a
regalia de ter os miúdos num bom colégio e para evitar falatório lá na
repartição, logo agora que tinha sido promovida a chefe de secção. Escrava
Caprichosa continuava a envergar boas roupas, mas as férias de sonho e os
restaurantes de crescer água na boca já não estavam contemplados nas suas horas
de lazer. Separados, viviam na mesma casa. Cada um no deu quarto com a sua
vida. Cruzavam-se casualmente na cozinha sem falarem, sem discutirem. Cruzavam-se
com cordialidade e indiferença.
Escrava
Caprichosa duma coisa se podia honrar! Não se vendia! Não vendia o corpo a
homem nenhum! Trocava prazer com os homens que conhecia ocasionalmente. Apenas
prazer. Ser mulher fetiche e fazer dos homens seus objetos de fetiche. Houve um
dia que começou a cansar-se. Afinal tinha de gerir emoções. As dela e daqueles
que, inconvenientemente, lhe ligavam a qualquer hora. “Não é possível a coisa
ficar mais simples?”, pensava. Tentava defender a sua liberdade, mas acabava
por envolver-se. Quer quisesse, quer não.
Certa vez
recebeu uma mensagem no chat. Uma declaração de amor de um amigo de infância.
Uma velha paixão, admiração dele para com ela. O seu coração palpitou. O seu
peito inflamou. Aos poucos, muito aos poucos quis olhar nos olhos desse amigo. E
esperou. Esperou. Esperou. Encontros
marcados e frustrados. O amigo acabava por não aparecer e nada dizer.
Depois deixava uns clips delico doces no mural onde um séquito de duas a três
mulheres gostavam e uma outra escrevia:
I miss you, too. Escrava Caprichosa sentia as pernas fraquejarem e o um gosto
metálico na garganta. O seu peito foi-se esvaziando, mas o coração teimava em
palpitar. De tão cansada de esperar e já de peito vazio pousou a cabeça no
teclado e adormeceu. Adormeceu a sua dor. O ecrã desligou. E não se sabe se foi
um fio de lágrima que se infiltrou no
sistema ou se simplesmente a baba que
lhe corria pelo queixo abaixo, enquanto sonhava destituindo-a do cargo de mulher gata selvagem,
que avariou o computador.
Como uma caneca vazia voltava a ser ela. A só ser. Aceitando-se como um ser autónomo.
Esvaziando-se para voltar a preencher-se.
A piU
Br, 17 de
Agosto de 2012
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