quarta-feira, 1 de agosto de 2012

A mim ninguém me bate

A mim ninguém me bate. Comigo é assim. Homem que me bate leva também.”

O olhar de Maria nublou-se. Um mergulho em si mesma em fracções de segundo foi tão fundo que quase foi necessário pedir uma bóia de salvação. “Ninguém deseja ser maltratado. E se o deseja é porque a sua auto estima está muito baixo.”, Pensou mas não disse.

“Eu não entendo porque é que há mulheres que permitem levar porrada.”, Continuou a amiga, “anos e anos naquilo. Parece que gostam. Ai se fosse comigo!”

Maria sentiu um imenso vazio. Os olhos abertos. Vazios. Quantas vezes tinha sido agredida? Perdeu a conta. Cenas de ciúmes absurdas. Psicóticas. Envolveu-se com um desequilibrado e só se apercebeu depois. Depois foi entendendo que não era a única a ter essa história e pensou: “ Há desequilíbrios socialmente aceites. O aberrante passa a ser normal. Uma espécie de loucura da normalidade.”
Durante uma conversa à mesa com amigas e colegas de profissão “só” duas em 7 não tinham sido vítimas de violência doméstica. e a violência não escolhe idade, etnia, estrato social, profissão, género. Apesar da violência física dificilmente aconteça da mulher para o homem devida à força física que cada um inatamente tem. Quanto à violência psicológica o caso já muda de figura. Como tal, dizer que só as mulheres são vitimas de violência doméstica não é de todo justo. E violência psicológica é tão mau ou pior. Mas toda a violência, seja ela física ou psicológica, é humilhante. Vive-se sobre o signo da ameaça e do medo. “Aberrantemente” não se sentiu sozinha. Sentiu o “conforto” de não sentir culpa de ter sido vitima. Tantas vezes procurou justificações em si para tal brutalidade. Tantas vezes achou que era ela que era nervosa e provocava tais episódios. Depois é uma bola de neve. Cai-se numa armadilha que talvez a própria pessoa tenha construído consciente ou inconscientemente para si e depois nem sempre a bota fica tão fácil de descalçar. A vulnerabilidade, a humilhação avoluma-se. Sentir-se realmente já se torna algo longínquo. Depois a coisa acaba. Muitas vezes sem ser da melhor forma. Quantas mulheres são assassinadas anualmente nos países ditos civilizados, emancipados?

“A mim ninguém me bate. Comigo é assim. Homem que me bate leva também.”

Sentiu um enorme vazio da amiga afirmar tal coisa. “Oxalá, pensou, não tenha o dissabor de tal vivência”.
Depois mudaram de conversa. Aliás a conversa não se chegara a desenvolver. Passados tantos anos para Maria era melindroso ir à cave das memórias vividas. Ou sentia que havia um entendimento primeiro ou então achava que era melhor não esmiuçar algo que ainda a tanto magoava e humilhava.

Mudaram de conversa. Trocaram umas larachas. Riram. Maria gosta de rir. Gosta de sentir os músculos da barriga se contorcerem. Das únicas coisas que é incapaz de se rir é de piada sobre violência.

A piU
Pl, 12 de Julho de 2012

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