quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Hoje vou sair à rua


Hoje vou sair à rua. Na mão esquerda um cravo vermelho. Na direita um kit revolução. Hoje vou sair à rua e gritar bem alto que estamos fartos e que não pagamos. Hoje vou sair à rua e dentro do meu kit revolução levo uma garrifinha de bolas de sabão, muito queixume e poucas propostas e vários saquinhos de sarna para mim e para partilhar com quem não tem realmente problemas, mas sabe que isto está mal e que não pode continuar. Hoje antes de sair à rua vou beber um bom vinho e degustar um bom queijo, para esquecer as injustiças que também já cometi no meu local de trabalho.

Hoje sai à rua de cravo vermelho murcho na mão. Levo o meu filho na outra mão. Dei-lhe um copo de leite antes de sairmos de casa. Há 8 meses que não consigo trabalho. O pouco tenho não chega nem à segunda semana do mês. No bolso levo os recibos verdes amachucados. Vivo da caridade dos amigos. Alguém me passa um saquinho de sarna para a mão. No meio da multidão olho a pessoa no fundo dos olhos. A minha imagem reflete-se  na sua pupila. A pessoa mantém o olhar. A malinha dela cai. Ela pergunta-me: ‘Quere vir beber uma cerveja?”.  Primeiro hesito. Pego na mão do meu filho e viro costas. Paro e respondo:”Aceito. Oferece?’

Hoje saímos à rua. Nada tínhamos na mão. Saímos juntos. Éramos muitos grupos de trabalho. Juntos, somos muitos. Estamos cansados. Há dias, há semanas, há meses  que dormimos apenas umas tantas horas. Pensar juntos cansa. Fazer juntos ainda mais. Nem sempre é fácil. Estamos a aprender a escutar e a propor. E principalmente a sermos claros com o que queremos.   Hoje saímos à rua. Não sabemos qual o desfecho, mas sabemos  que não nos queixamos só porque sim.

A piU
Br, Agosto de 2012

Condominio fechado

Fechei-me no meu condominio para me proteger da rua. Recolhi-me no meu amplo e confortável chalé para não cheirar o chulé do pobre. Refugiei-me para não me roubarem a minha riqueza. Olhei ao espelho e sorri. Quiz deslocar-me e a escolta acompanhou-me. Veio alguém de abraços abertos para mim e morri de medo. A escolta afastou aqueles braços abertos. Ao fundo a voz fez-se ouvir:" Não te lembras de mim? Andámos juntos na escola!" Olhei e e ainda vi um sorriso de alvos dentes escorregar no virar da esquina. Voltei para casa. Mergulhei na piscina, mas aquele vazio no peito não passava. Liguei o ar condicionado, mas aquelo vazio não ia embora. Senti tédio em frente ao ecrã. Aqueci um ultra congelado bio light no micro ondas. Degustei mesmo as partes que não descongelaram por completo. Assisti ao futebol. Vi um pouco de telenovela. Informei-me com o noticiário. Tanta desgraça no mundo! Mas aquele vazio não passava. Lembrei-me do sorrido de alvos dentes e dos pés descalços do seu dono. Olhei-me ao espelho. Não consegui sorrir. Nem um sorriso forçado. Boiei na piscina olhando as nuvens passarem.

A piU
br, Agosto de 2012

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Medo de fantasmas

- É pá! Anda aqui um fantasma a zumbizar no mkeu ouvido. Tou aqui que nem posso!
- Um fantasma?
- Sim, um fantasma!
- Tu acreditas em fantasmas?
- Cada um acredita no que quer!
-Mas tu és agnóstico!
- E o que é que tem haver? Fiz um diagnóstico ao meu agnotismo e percebo que acredito em fantasmas.
- E eles têm sexo?
- Têm sexo? Oh pá! Vê lá o que dizes!! Tás numa publicação pública no meio do facebook! Tás on line, pá, para o mundo inteiro!!! Tu tás a ver o que é isso??!!
- O quê? Tás maluco? Eu perguntei se eles tinham sexo.
- Outra vez?! Mauuuu!
- Ai! Se são mulher ou homem!
- Ah! Género! Gênero! Mas ouve lá. o que é tu achas? Que são uns anjinhos!?
- Afinal acreditas em fantasmas!
- Não acredito, mas para quem acredita os fantasmas são almas penadas.
-A sério? Pensei que os nossos fantasmas não fossem e sim sentimentos...
- Como assim?
- Por exemplo, este meu fantasma é o fantasma do medo. Bufa-me ao ouvido:"Cuidado! Não confies nas pessoas! Cuidado! Tudo é perigosooooo!"
-A sério? O teu fantasma diz-te isso?
- Outro dia até me disse que todas as pessoas são perigosas. Principalmente aquelas  que vivem perto das praias idilicas.
-Tás a brincar? Tou preocupado contigo! Talvez seja melhor procurares uma ajuda profissional! Achas que as pessoas que vivem perto das prias idilicas vão-te fazer mal?
- Mas é o que eles dizem!
- Eles! Mas eles quem?
- Os agentes de viagem!
-Aaaah! Entendi! Nesse caso existe um monte de gente a precisar de ajuda profissional.
- Pois é!... Mas olha,  ele há muitos livros  muitos jeitosos de auto ajuda lá no aeroporto quando eu vou de férias.

(...)

- Mas já agora. Onde é que ficam essas praias idilicas?
- Tu não sabes?
- Acho que tenho uma ideia. Mas diz lá.
- No sul da Europa! E lá para o meio do Oriente, onde parece que são mais radicais até. Do you know what I mean?
- I sea! I sea!




(foto: Praia da Marinha, Algarve/ Portugal)

A piU
bR, Agosto de 2012

Agora que tenho 7 anos tou diferente

-Agora que fiz 7 anos tou diferente!
-A sério? Sentes-te mais adulto.
-Adulto não. Diferente.
- diferente com?
- Mais feliz, mais alegre.
- E porquê mais feliz, mais alegre?
- Aaaah sei lá! Com mais amizade.

(...)

-Eh!Porque é que vc consegue comer coisas verdes?
-Comendo.
- Como comendo? Isso não é resposta!!
-Comendo.
-Aaaaah eu primeiro olho, vejo se me garda e depois vejo se é gostoso, depois é que como. Coisa verde, Bilhaaaaaque
-Como vc sabe? Nunca provou!

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Ser bonzinho

- Ele é tão bonzinho!
- Pois é!
- Nunca o vi a levantar a voz a ninguém, nem a revirar os olhos.
-Pois é!
- Sempre prestável, de sorriso na cara. Amigo do seu amigo.
-Pois é!
-Sempre de acordo com os outros.
-Ah pois é! Lá isso é verdade!
- Será que ele também defeca?
- De quê?
-Se o seu peristaltismo intestinal aumenta?
-Aaaahh! Já podias ter dito! hmmm Acho que não!
-Pois, ele é mesmo muito bonzinho...
-Pois é! (...) (...) É pá! Tá aqui um cheiro.... Estranho...
-Achas?! Não fui eu!!!
- Prontos, tá bem bem!... Fui eu! Desculpa!
-Acontece a qualquer um. Não te preocupes!
-Pois é! Lá isso é!

A piU
BR, 27 de Agosto de 2012

A mulher

A mulher mudou a página. Uma folha velha, amarelecida. Gasta pelo tempo. A mulher virou a página e seguiu para o capítulo seguinte. Algumas folhas em branco, outras numa língua estranha. Semelhante, mas estranha. A mulher não desistiu de continuar a tentar ler. As pálpebras caíam. Tentava segurá-las. Um vazio no estômago. A mulher no meio do caminho. Um caminho ora que se abre, ora se esconde por
entre a vegetação. A mulher tem de abrir caminho. Só tem as mãos para o fazer. Arranja mil e uma distracções para não arregaçar as mangas. O caminho está na frente. Voltar para trás? Porquê voltar para trás? As pernas fraquejam, mas não caem totalmente. Abre os olhos. Fixa um ponto. Mantêm o equilíbrio. Cai no chão. Sentirem pena, não. Levanta-se devagarinho. Restabelece-se. Vira uma página, vira outra. Lança mãos, pés, tronco ao caminho. Não olha para trás. Olha para os lados, para a frente. Mas para trás não. E num impulso dá um salto erguendo o peito como se duas molas os pés tivessem. Tenta agarrar uma nuvem. Cai e repõe-se. Percebe que uma nuvem se esvai entre as mãos. Fixa o olhar num troco de uma árvore de grossas raízes e záááásssss! Nunca mais pára! De galho em galho de árvore em árvore sempre se lançando no espaço e de olhar fixo no horizonte.

A piU
Br, 23.08.2012

Perfeições perfeitas

- Um pais tão perfeito!
- Qual país?
-Aquele lá! O civilizado!
-Ah!Sim, sim! É perfeito! Tens razão! As pessoas lá são tão civilizadas! Já vem nos genes!
-Sim, tens razão. Nós por cá somos assim, porque é cultural.
- Pois é. Nada a fazer.
-Ao passo que nos países perfeitos tudo funciona.
- Claro! E as pessoas são educadas.
-Pois são!
-Como será o sotão desse país?

-Arrumado.
-E as dores? Onde eles as guardam?
-Achas que eles têm dores?
-Talvez não. São tão perfeitos.
-Ah, mas não é possivel!...
-Será que eles gritam para dentro dum saco e depois atiram ao mar?
-Talvez.
- E como o mar congela no Inverno... Ninguém mais nota.
-Mas eles são tão silenciosos. Eu acho que não gritam.
-Devem gritar, mas para dentro.
- Pois, mas isso faz mal ao estômago.
-hmmm tens razão. Aaaah eles comem bem. Tudo empacotado, assépticamente empacotado.
- Ah! Então isso é perfeito!
- Espera aí!... um bocadinho.... Vou só ali gritar um pouco no cimo da falésia e chorar um cadinho em homenagem a essas pessoas.
-Vai lá! Vai lá! Eeeeeehhh! Espera por mim!!!!!
 
A piU
BR, 25 de Agosto de 2012

Imperfeições perfeitas

- Sabes o que eu encontrei ainda agora aqui enquanto limpava i«o meu umbigo?
- Conta!
-Um monstro.
-UM MONS...
Chiuuuu Não me envergonhes...
- Tu tens um monstro no teu umbigo?
- Tu não tens?
- Eu não!!
-És muito estranho!...
-Agora espera aí que eu vou pentia-lo e lavar-lhe os dentes para que fique tranquilo.

-Olha... emprestas-me a pinça?
-Claro! Afinal também tens um!
- sim acho que sim! Tou a ver aqui alguma coisa.É melhor acarinhá-lo para não morder. Para não me morder.
-Vês como tu sabes?!
-psssttt Quieto!Aqui! Toma lá biscoito! Bonito! Bonito! Assim é lindo! Muito bem, meuu monstrinho maluquito!!
 
A piU
BR, 25 de Agosto 2012

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

DIÁRIO DE BORDO (penúltimo fim de semana depois de Setembro)


DIÁRIO  DE BORDO (penúltimo fim de semana depois de Setembro)

Sexta- jantar marroquino. Sou bom garfo, boa mão, boa boca. Gosto de todo tipo de comida. A única coisa que o meu estômago reclama é da comida fast food...da. Nêê! Comida vietnamita, chilena, turca, japonesa, mexicana, chinesa, francesa, portuguesa, brasileira, indiana, paquistanesa. Nesse jantar conheço uma moça do Paquistão. Conversamos. Tem outra moça da indonésia que entende bem português, mas quando fala é em inglês. A moça do Paquistão faz o doutorado em Química. Pergunta-me se o meu marido é português. Oooops responder significaria contar-lhe uma parte considerável dos meus últimos anos de vida. Respondo-lhe vagamente, porque se trata da minha intimidade, que muito menos iria expô-la publicamente no facebook e depois a intimidade fala-se, como o próprio nome indica, com pessoas da nossa intimidade. Mas fico um pouco apreensiva, também, quanto a dar-lhe uma resposta que não fira susceptibilidades (cai o p e fica o p. Por via das dúvidas mantenho. Eu falo com p, além de escrever! Toma!). A amiga que está ao lado diz que se separou, ao que a amiga do Paquistão responde: ”Parabéns!” Hmmm, sendo assim, penso, a abertura para o diálogo talvez seja maior do que eu pensava. Conversa puxa conversa e a menina pergunta: ”Vc é católica?” ‘hmmm Agora como é que me desenvençilho desta sem ferir a tal da susceptibilidade?”; “Bem, a minha família tem uma educação católica, mas eu não sou praticante. (cof cof) Na verdade, não apoio uma instituição que cometeu e comete tanta barbárie. “Inquisição, perseguição e fomentação de ignorância, opressão.” Oooops E agora, será que fui longe demais?
A conversa continua. Vai dar no casamento gay e adoção. Eu e uma amiga do México defendemos tais causas, dizendo que onde há amor, cuidado e respeito porque não? Agora fomos longe demais!!! A menina escuta e mantém tranquilidade, mas sentimos algum desconforto. Ela fala da importância da família no Paquistão e que se não se falar muito da homossexualidade não se vai dar ideias às pessoas. Antes de sair pergunta-nos se gostávamos de ir uma mesquita. Eu gostava! Não pelo lado exótico nem com o objetivo de me deixar converter, mas pela curiosidade de conhecer e saber e tentar entender o que por lá se pensa e a acredita. Conhecer as práticas sem juízo de valores. No entanto eu a minha amiga do México ficamos na dúvida se não chocamos a moça.
Sábado-  ando a pensar o que vou falar na escola das meninas sobre Portugal. Não tenho vontade daquela conversa de carácácá do Pedrito que chegou numa caravela e depois isto e aquilo. Acho que é carácácá para ambos os lados. Apetece-me falar do Gil Vicente, dramaturgo da época dos descobrimentos/ achamento, que faz um retrato ainda atual do português e da sua mania de ser mais do que o que é. De ostentar o que não tem, de se endividar por dá cá aquela palha. Gil Vicente é bom. Porque posso ainda falar sobre a evolução da língua. Que ler no original é um desafio hercúleo para os especialistas. E como a língua é viva cada um fala do seu jeito e que essa questão de homogeneizar a língua é também conversa de carácácá. Ooooops Estarei outra vez a ferir susceptibilidades? Gostava de falar também do Agostinho da Silva e da sua vinda para o Brasil durante a ditadura portuguesa, da música do Chico Buarque “Tanto mar”. Também gostava de falar da pintora Paula Rego e da sua visão de Portugal. Oooops será que vai sair muito do que é esperado? Aaaaaahhh! O interessante destes encontros é nos surpreendermos-nos e exercitarmos a nossa capacidade de escuta e de aceitar que não pensamos todos da mesma maneira. Uffaaaa! Ainda bem!

Domingo- a minha amiga do México dá-me a escolher três colares do seu país. Fico indecisa entre dois. Um é feito com uns pauzinhos vindos do deserto intercalado com finas conchas lilases. O outro é feito de pequenininhos búzios  e de pequenas conchas menores que as de berbigão (nunca percebi como se encontra junto ao mar conchas do mesmo tamanho... Um mistério para mim...). O último é mais frágil, mas assenta-me no peito como um imenso mar. Experimento o do deserto e sinto a minha respiração mais tranquila com o das conchinhas. Sinto-me mais perto do mar, que tanta falta sinto. Depois cuidar da fragilidade deixa-nos mais atentos, mais susceptíveis de sermos cuidadosos conosco e com o que nos rodeia.
Despeço-me das minhas amigas e sigo rua afora, imaginado histórias para partilhar aquilo que penso salvaguardando a intimidade e as ilações errôneas. E de repente lembro-me duma história que estou a escrever para a Marta em Portugal sobre “Princesas, Bruxas e Lobos”. Mostro um dos textos a uma pessoa amiga. Ela gosta, mas diz: ’Vais publicar no face book!? Vê lá o que a comunidade do bidê público vai achar!” Pois é, tem razão a moral e os bons costumes tanto estão no Paquistão, como no Japão, como no Brasilão ou no Portugalitão. Acabamos por sermos feitos da mesma massa, só que com algumas nuances. Claro! Quanto a mim, gosto de dar de caras com as nuances. Dá cor à vida!

(imagem: A família, Paula Rego)
A piU
BR, 20 de Agosto de 2012

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Como uma caneca vazia


Escrava caprichosa já não era tão caprichosa como antes. Separada maritalmente, vivia na mesma casa de Escravo Durão para não perder a regalia de ter os miúdos num bom colégio e para evitar falatório lá na repartição, logo agora que tinha sido promovida a chefe de secção. Escrava Caprichosa continuava a envergar boas roupas, mas as férias de sonho e os restaurantes de crescer água na boca já não estavam contemplados nas suas horas de lazer. Separados, viviam na mesma casa. Cada um no deu quarto com a sua vida. Cruzavam-se casualmente na cozinha sem falarem, sem discutirem. Cruzavam-se com cordialidade e indiferença.

Escrava Caprichosa duma coisa se podia honrar! Não se vendia! Não vendia o corpo a homem nenhum! Trocava prazer com os homens que conhecia ocasionalmente. Apenas prazer. Ser mulher fetiche e fazer dos homens seus objetos de fetiche. Houve um dia que começou a cansar-se. Afinal tinha de gerir emoções. As dela e daqueles que, inconvenientemente, lhe ligavam a qualquer hora. “Não é possível a coisa ficar mais simples?”, pensava. Tentava defender a sua liberdade, mas acabava por envolver-se. Quer quisesse, quer não.

Certa vez recebeu uma mensagem no chat. Uma declaração de amor de um amigo de infância. Uma velha paixão, admiração dele para com ela. O seu coração palpitou. O seu peito inflamou. Aos poucos, muito aos poucos quis olhar nos olhos desse amigo. E esperou. Esperou. Esperou. Encontros  marcados e frustrados. O amigo acabava por não aparecer e nada dizer. Depois deixava uns clips delico doces no mural onde um séquito de duas a três mulheres gostavam  e uma outra escrevia: I miss you, too. Escrava Caprichosa sentia as pernas fraquejarem e o um gosto metálico na garganta. O seu peito foi-se esvaziando, mas o coração teimava em palpitar. De tão cansada de esperar e já de peito vazio pousou a cabeça no teclado e adormeceu. Adormeceu a sua dor. O ecrã desligou. E não se sabe se foi um fio de lágrima  que se infiltrou no sistema ou se  simplesmente a baba que lhe corria pelo queixo abaixo, enquanto sonhava  destituindo-a do cargo de mulher gata selvagem, que avariou o computador.

Como uma caneca vazia voltava a ser ela. A só ser. Aceitando-se como um ser autónomo. Esvaziando-se para voltar a preencher-se.

A piU
Br, 17 de Agosto de 2012

Escrav@s de si mesm@s


Escrava caprichosa era uma belezura de mulher. Não é que fosse bela, até poderia sê-lo, mas o que ressaltava à vista era aquele corpo escultural impecável. Impecável era o termo. Mãe de três filhos e um corpo impecável. Nem uma prega a mais, nem a menos. Bom havia umas tantas, mas estavam escondidas.
Escrava caprichosa também era uma dona de casa impecável. A mulher a dias  alinhava as lides e a escrava caprichosa mantinha. Durante o dia escrava caprichosa atendia ao público numa repartição pública. E o seu trato era impecável. As pessoas muitas vezes impacientes e sentindo-se injustiçadas e ela sempre impecável. Tentava ajudar as pessoas da melhor maneira. Nas horas de menor fluxo lá ia ela para a net conhecer pessoas. Homens bonitos, por exemplo. De aspecto impecável. Finalizado o horário de expediente ia buscar as crianças à escola, como todos os dias, e dava-lhes banho e fazia o jantar para a família toda. Depois o marido colocava a louça na máquina, porque nisso ele era impecável. Nesse aspecto não se podia queixar. Louça e roupa para dentro da máquina era com o marido. E as migalhas do sofá era também ele que aspirava.
Escravo Durão gostava da mulher. Fazia-lhe todas as vontades. Cansado do trabalho, nem sempre tinha tempo para ela. Gosta dela, mas esta exigia muito. Roupas impecáveis, férias de sonho, restaurantes de crescer água na boca. Gostava de sair com ela. Faziam cá um vistaço! Escravo Durão gosta de corpos esbeltos. Gosta do corpo da mulher, mas também gosta de dar uma espiadinha naqueles que aparecem na net. Escravo Durão fica cada vez mais durão, porque o dinheiro não chegava para tudo. A escola dos miúdos, a ama para ficar com eles quando iam ao restaurante de crescer água na boca, as férias de sonho multiplicadas por 5. Escravo Durão já não agüenta aquela vida! Precisa dar uma escapadela. Mas de forma impecável.
De noite, quando os miúdos se vão deitar Escravo Durão e Escrava Caprichosa vai cada um para o seu computador e dão as suas escapadelas virtuais, mas num segredo impecável.
Escravo Durão marca um encontro com uma moça que diz que “é solteira todos os dias”. Dia 2 às 20h. Boa hora para se dizer em casa que se tem uma reunião.
Escrava Caprichosa marca um encontro com um homem bem parecido que diz “que se sente só”. Dia 2 Às 20h. Boa hora para se dizer que se tem dentista. Os miúdos ficam com uma amiga desta vez.
Escravo Durão espera a moça no escuro. Foi ela que marcou. Ela vem de rompante e beija-o por de trás. A partir daí a imaginação pode ser fértil. Escravo Durão há muito que não sentia a sua virilidade daquela maneira. E a moça, a Escrava caprichosa que não se tinha ainda dado conta que era a Escravo Durão que  tinha entregue toda a sua fantasia contida durante anos e anos, movia-se como um gato selvagem. Finalizado o ato combinaram novo encontro. Ofegantes nem se olharam.  Novo encontro. Novo êxtase. Mas de repente, no momento exato do auge se depararam com o rosto um do outro. Acabado o ato nem se falaram e como dois desconhecidos tomaram o seu caminho sem se despedirem.

Umas semanas mais tarde em casa, Escravo Durão perguntou se poderiam reconsiderar a relação, reconstrui-la ao que Escrava Caprichosa respondeu: “Não quero compromissos. Estou bem com a vida que tenho, mas podemo-nos encontrar em segredo. Sem que ninguém saiba.”

 

Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. Mas há fagulhas da realidade que são inspiradoras.

A piU
Br, 15 de Agosto de 2012

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

O homem rídiculo e bem comportado

- Bom dia! Venho apresentar-me ao serviço. Sou um sujeito rídiculo. Não o nego. Sou rídiculo porque prezo ser rídiculo. Gosto de o ser. Já nada tenho a perder, se não o meu próprio rídiculo. Se sinto que o perco... Desfaleço!  A vida perde sentido para todo o sempre!!  Oh vida infame que insiste em que eu seja correcto, falsamente honesto, mentirosamente solidário! Sou rídiculo. Pronto! Sou rídiculo, porque acreditei, um dia, que o mundo não era rídiculo. Enganei-me. Redondamente. E agora vejo-me aqui com a minha própria ridiculitude. Achei que tudo sabia. Mas sei muito pouco ou quase nada ou mesmo nada. Nada de nada. Venho me apresentar hoje ao serviço e é isto que tenho para lhe dizer.
-Muito bem. E  o senhor também é vulnerável?
-Sou.
-Excelente! Está contratado. Volte daqui a 10 anos. Que dia é hoje? Hmmm. Pois bem, volte daqui a 10 anos no dia de hoje à mesma hora.
-Obrigado. Muitissimo obrigada! Posso abraça-lo? Um muitissimo obrigado...
-Por favor, pode chorar mas não me manche o meu fraque de vinil. Tenho uma reunião a seguir com pessoas influentes no meio.

A piU
Br, 2 de Agosto de 2012

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

É mesmo o país que temos?

Évora é bonita como sempre. Pena não ter rio ou mar. Quem sabe um lago artificial não ofendesse a mãe natureza?!... Encontro velhos amigos, mas que não são amigos velhos. Velhos amigos que teimam em manter o seu oficio. Mas onde estão os seus colegas de profissão que coabitam na mesma cidade? Revolucionar não será apreciar o trabalho do próximo? De partilhar, de reflectir? Évora é uma terra de lobbies políticos e de vãos protagonismos. Évora e o resto do país. Pena… Volvidos vinte anos volto. De passagem como sempre. Houve tempos que sonhei viver em Évora. Mas quando eu cheguei já deveria ser tarde, como o poeta Almada Negreiros diz, já estava tudo dividido entre os outros e seus descendentes.  Mas o que me faz voltar? O que me faz voltar de passagem? A esperança que alguma coisa mude ou simplesmente a esperança que o pouco que resta se mantenha vivo? Um povo sem manifestações artísticas continua a ter uma identidade? Um povo que não sonha estará condenado ao seu próprio suicídio? Uma morte anunciada, triste porque anunciada.
E perguntou-me: que público é esse que não está habituado ou desabituou-se de assistir a espectáculos? Que público é esse que simplesmente se habituou a um determinado tipo de espectáculos? Qual a sua exigência? Em que lugar coloca a arte e os seus fazedores? Tem direito a exigir?... hhhmmm. Talvez. Aaaaahhhh porque nós temos de dar o que o público quer ou que está à espera? E quanto à arte do palhaço… divirtam-me! A mim e às minhas crianças. Às minhas crianças principalmente que eu assisto de óculos escuros, dormitando. Não me comprometam nas vossas brincadeiras. Que brincadeira é essa? E que compromisso é esse entre o que o público quer e as inquietações dos artistas? Artistas? Que público é esse que considera artistas só os que aparecem na tv? Que artistas e público são esse que se lhes escapou reivindicarem a existência do ministério da cultura e a sua extinção? Entre a cultura do supermercado o subsidio dependência de meia dúzia de amiguinhos, uns com mais mérito que outros, existirá um espaço para os criadores? Que artistas são esses? Investem ou não na sua criação?
Passo por Évora. Por Palmela. Por Lisboa. Pelo Porto. Passo por Portugal e aceno. Digo: até já! Contem comigo para o que precisarem! Mas desta vez para se mudar o capítulo da história, com ganas. Com o tal rigor e generosidade elucidado por uma professora em terras brasileiras.
Talvez seja o partilhar de momentos, de pensar e fazer juntos mais relevante. Mais do que pretender ensinar querer aprender. Mais do que achar que dois dedinhos de conhecimento já chega, desejar saltar ao eixo para lá do imaginável. Começar a dar cor aos cansados luxos que tão falsamente dourados foram estalando.
Todavia, contudo, no entanto tiro o meu chapéu, a minha boina, o meu lenço a quem existe e resiste ao longo de anos, trabalhando e criando nas condições nem sempre favoráveis.
Bom, e aqui vai um abraço especial para os quixoteanos Pim taí! Estamos juntos!

A piU
24 DE Julho de 2012-07-25
"As aventuras e desventuras de Maria Bonita"
Évora/ Portugal, Julho de 2011

A mim ninguém me bate

A mim ninguém me bate. Comigo é assim. Homem que me bate leva também.”

O olhar de Maria nublou-se. Um mergulho em si mesma em fracções de segundo foi tão fundo que quase foi necessário pedir uma bóia de salvação. “Ninguém deseja ser maltratado. E se o deseja é porque a sua auto estima está muito baixo.”, Pensou mas não disse.

“Eu não entendo porque é que há mulheres que permitem levar porrada.”, Continuou a amiga, “anos e anos naquilo. Parece que gostam. Ai se fosse comigo!”

Maria sentiu um imenso vazio. Os olhos abertos. Vazios. Quantas vezes tinha sido agredida? Perdeu a conta. Cenas de ciúmes absurdas. Psicóticas. Envolveu-se com um desequilibrado e só se apercebeu depois. Depois foi entendendo que não era a única a ter essa história e pensou: “ Há desequilíbrios socialmente aceites. O aberrante passa a ser normal. Uma espécie de loucura da normalidade.”
Durante uma conversa à mesa com amigas e colegas de profissão “só” duas em 7 não tinham sido vítimas de violência doméstica. e a violência não escolhe idade, etnia, estrato social, profissão, género. Apesar da violência física dificilmente aconteça da mulher para o homem devida à força física que cada um inatamente tem. Quanto à violência psicológica o caso já muda de figura. Como tal, dizer que só as mulheres são vitimas de violência doméstica não é de todo justo. E violência psicológica é tão mau ou pior. Mas toda a violência, seja ela física ou psicológica, é humilhante. Vive-se sobre o signo da ameaça e do medo. “Aberrantemente” não se sentiu sozinha. Sentiu o “conforto” de não sentir culpa de ter sido vitima. Tantas vezes procurou justificações em si para tal brutalidade. Tantas vezes achou que era ela que era nervosa e provocava tais episódios. Depois é uma bola de neve. Cai-se numa armadilha que talvez a própria pessoa tenha construído consciente ou inconscientemente para si e depois nem sempre a bota fica tão fácil de descalçar. A vulnerabilidade, a humilhação avoluma-se. Sentir-se realmente já se torna algo longínquo. Depois a coisa acaba. Muitas vezes sem ser da melhor forma. Quantas mulheres são assassinadas anualmente nos países ditos civilizados, emancipados?

“A mim ninguém me bate. Comigo é assim. Homem que me bate leva também.”

Sentiu um enorme vazio da amiga afirmar tal coisa. “Oxalá, pensou, não tenha o dissabor de tal vivência”.
Depois mudaram de conversa. Aliás a conversa não se chegara a desenvolver. Passados tantos anos para Maria era melindroso ir à cave das memórias vividas. Ou sentia que havia um entendimento primeiro ou então achava que era melhor não esmiuçar algo que ainda a tanto magoava e humilhava.

Mudaram de conversa. Trocaram umas larachas. Riram. Maria gosta de rir. Gosta de sentir os músculos da barriga se contorcerem. Das únicas coisas que é incapaz de se rir é de piada sobre violência.

A piU
Pl, 12 de Julho de 2012

Ser português

O percurso natural de vida dum português normal em território nacional num Portugal transcendentalmente fenomenal
Sonata em dó menor, ou melhor, partitura sem dó

Infância:

“Tas aqui tas a levá-las! Tu mamazas! Pensas o quê? Deixa o teu pai chegar a casa! Tu com ele não fazes farinha! Este miúdo, pá, dá cabo de mim! Tou aqui que nem posso! A cabeça em água! O dia inteiro nisto… Rubeeeeeeen Rafael!!!! O que é que eu te disse?! Olha que levas na boca! O raça do gaiato!!”

Adolescência:

“Esta juventude está perdida! Ali aos beijos no meio da rua! Uma “vargonha”! Anda uma mãe a criar um filho para isto!... tzzzz Ai se fosse meu filho! Ah e elas são pior que eles! Fazem o que querem e andam para aí todas à nua. É o que vêm na televisão. Mostram tudo e elas imitam! Tá tudo perdido! E é só exigir! Ele é o “tenes” de marca, a motoreta… Mas trabalhar tá quieto! E na escola passeiam os livros.”

Idade adulta:

“Olhe, isto é assim: se o senhor não está contente o melhor é pôr-se a andar, mas digo-lhe que não vai ter sorte nenhuma! Sai daqui e não é ninguém! Não se esqueça que lhe estou a dar uma oportunidade de ser alguém na vida. Eu tenho muita paciência para si. O senhor é disfuncional. E veja o lá o que diz e o que faz, porque os seus colegas contam-me. Por isso, é melhor agradecer por ainda cá estar como estagiário há 5 anos. Você sai daqui e não é nada.”

Velhice:

“Coitado, naquele tempo as pessoas não recebiam amor. Tempos duros. Por isso ele é razinza. (…) Glauco Armeneliisssss, deixa o teu irmão sossegado! Olha que eu te chego a roupa ao pêlo!! Não vês que o teu avô precisa de descanso? Olha que levas na boca! Tu a mim não me respondes!”

A piU
Pl, 12 de Julho de 2012

Once upon a time

When you are in your own way never say: I want to stop! I can’t anymore. (…) To live to close to myself.(…) Sometimes it’s a long way to be close to myself, but when I meet other people who want, also, the dream can be a reality.
(A Piu, apontamentos de ensaio. Setembro de 2011)

    Ora deixa cá ver notícias boas do meu país! Tralálá… hmmm Ora aqui está! Pois bem! A revista “Ípsilon”. Olha. Olha o festival de cinema de Vila do Conde. Já vi coisas muitos boas por lá há uns anitos atrás. Pena foi que quando voltei tinham-me gamado a minha velha mota, que para pô-la a trabalhar era preciso comer um bife (de tofu(!!) caros amigos vegetarianos!) Era sempre uma festa dar ao quico!... Mas acho que me fez muito bem às articulações da perna direita! Lá ía eu a açapar a 50 km/hora no máximo. Iuuuuu!!.... vrrruuum PUM!...

    Ah falam sobre curtas-metragens. Olha o amigo Sandro!! Sandro Aguilar para o público em geral. Bom, para um público especifico de filmes específicos. Pessoalmente não me sinto à vontade em tecer ilações em torno do trabalho do Sandro. Não me tocam, por isso não sei dizer se é bom ou mau; apesar da minha efémera passagem no cinema tenha sido a participação em duas curtas do Sandro, quando este ainda estava no Conservatório e eu na escola de arte dramática. Mas como espectadora comum, apreciadora de cinema, sinto hermetismo nos seus filmes. Mas não tenho argumentação intelectual para exprimir o meu parecer diante do realizador. Fico intimidada (não estou a ironizar. É a mais pura verdade) Bem, o que diz?

“ Há um trabalho continuado com alguns realizadores, apostas que são feitas e que na maior parte dos casos são consequentes. Não nos interessa produzir episodicamente, temos acompanhado mais ou menos os realizadores”. .Sempre sem uma visão “carreirista” das coisas. Quando produzimos o primeiro filme do João Nicolau, por exemplo, não sabíamos se havia ali uma carreira. Suspeitámos que sim, mas não tínhamos essa perspectiva estratégica.

    E pá! Agora sim estou aqui num processo de identificação “Sempre sem uma visão “carreirista” das coisas”. Será que esta visão que nos é comuns nós herdamos da nossa experiência primeira lá no grupo de teatro orientado pelo Victor, professor de filosofia da Escola Secundária da Parede, quando andávamos no 10º ano?

    Da minha parte essa experiência definiu o meu percurso, longe do carreirismo. Há coisas que nos dizem ou nos alertam em determinados momentos que são marcantes para o resto da vida. Sem determinismo. Espero! O Victor a dada altura diz:” As pessoas vão para o teatro por variadíssimas razões. Umas para se exprimirem, para se encontrarem ou para encontrarem um modo de expressão artístico; outras vão para arranjarem amigos e passarem o tempo, outras para aparecerem e terem muito sucesso e outras haverão que terão as suas razões mais íntimas. O que eu proponho é uma busca, um processo de trabalho. Não estou interessado em apresentar peçinhas”
Além de me ter identificado com a primeira razão de ali estar gostei da proposta de pesquisa. De work in progress.
    Criámos um grupo engraçado dumas oitos pessoas depois dos primeiros entusiasmos das 20 e tal pessoas que vieram ao início. Acabou por ser um grupo tertúlico, se é que se pode chamar assim. Íamos para escola durante as férias para pesquisar o fazer teatral. Encontrávamo-nos aos domingos e e trocávamos ideias e experiências. Confesso que eu ficava muitas vezes calada, pois os livros que eles tinham lido e os filmes que conheciam eu estava a leste, mesmo estando a par de algumas coisas. Depois uma amiga, estudante de música, tocava harpa e aí dava para fechar os olhos ou ficar bastante atenta ao dedilhar das cordas e à inclinação do instrumento. Depois havia o geniozinho do piano. A menina Adriana que além de ser uma exímia pianista escrevia umas coisas surreais que eu achava interessantes E num desses domingos, depois duma queda minha na acelera, fomos para uns escombros fazer uma fotonovela. Bestial! Eu fazia de apaixonada que coquetemente fugia do meu amado (o Sandro) em câmara lenta. Depois encontrámos um pacote vazio de chicletes e a foto seguinte era ele com o dito pacote na mão atrás de mim. A foto final era um beijo de happy end com o pacote em baixo no meio do beijo. As fotos eram tiradas pela Djanira que mais tarde seria a companheira e mãe dos filhos do Sandro.

    Ainda fomos vizinhos em Lisboa. Mas o vai e vêm citadino não nos fez mais próximos nessa época já com filhos.

    Nunca cheguei a ver essa fotonovela no papel, mas trago essas recordações e mais o dedo partido nesse dia que eu teimosamente não assumia que estava num estado lastimoso. Tal era a teimosia e o receio de informar à entidade paternal que tinha caído, que propus irmos ao cinema. Ver o quê? “A divina comédia” do Manoel de Oliveira. Que tormenta divinal!! Nenhuma razão para rir. Eu já não sabia se era do filme se era do dedo. Um suplicio!... Resumindo, abri o jogo e lá fui ao hospital no final dum dia cheio de emoções. Fotonovela seguido dum Manoel de Oliveira no seu melhor.

    E o artigo da Ípsilon continuava: “ (…) Isso é o mais importante: que as curtas consigam ser encaradas como um formato nobre, que permita um nível de experimentação e de afirmação muito rápida do universo do realizador que depois pode ou não derivar em longas-metragens.”

Give me five, man! Enobrecer uma arte ou linguagem considerada menor pelo mainstream e manter um nível de experimentação! Estou contigo nisso e na admiração e respeito por alguém que continua a fazer cinema, arte essa tão pouco incentivada por terras lusas como as outras artes. E o mais importante! A fazer o cinema em que se acredita.
Uma vénia para o senhor Sandro Aguilar!

A piU
Lx, 7 de Julho de 2012


Tuaregue

Atravessei o deserto. Quase, quase morri de sede. Pareceu-me ver o paraíso. Sol demasiado na cabeça. Lutei contra uma tempestade de areia. A areia alisou-me a pele. Rejuvenesci. Senti fome, uma fome do estômago se colar às costas. Chorei de fraqueza. Chorei e depois adormeci para não sentir mais fome. Dias e dias a trote andei. Um oásis. Ali fiquei. Permaneci. Tive de continuar caminho. O verde das árvores despediu-se de mim, ao fundo. Lá no horizonte. Continuei o meu trote cadenciado. Dias e dias a fio. Saciei-me com apenas uma gotinha de água e da visão do oásis, lá muito ao fundo. Caminhei sabendo intimamente que mais à frente me despediria da aridez do deserto. Rebolei do alto duma duna até cá abaixo. Ri-me de alegria. Alegria de rebolar e sentir aquela cócega na barriga. Abri os olhos e levei com um grandessíssimo flash de luz. Um raio de sol trespassou o meu olhar. Resisti de olhos abertos a essa ofuscação. Mais tarde escutei músicas antigas à luz duma lua cheia e gorda que delicadamente beijava o horizonte.


A piU
Br, 24 de Julho de 2012-07-25

Ana Piu em Palmela/ Portugal
foto: António Tavares