terça-feira, 15 de novembro de 2022

MIL NOVECENTOS E VINTE E DOIS- O CENTENÁRIO DA MINHA AVÓ


 Aquela década começava para alguns como os conhecidos anos loucos, entre a uma guerra mundial e outra dando azo a fugas, exilios e refugios da Europa para a  terra nova, o novo mundo. Esses anos de boémia e adventos da modernidade mesmo assim eram só para alguns, para os que podiam, que para todos os efeitos era uma minoria. No Brasil, numa São Paulo ainda considerada provinciana, o ano começou com a semana dos modernistas. Um marco na história da Arte, onde algumas pintoras aparecem nesse universo marcadamente masculino e eurocentrico, embora com a antropofagia artistica como bandeira duma identidade nacional. 

Do outro lado do oceano, na factualmente considerada a terra dos colonizadores do Brasil e que ainda colonizava territórios africanos, surgia o partido comunista português, assim como a União Soviética. Nesse mesmo ano nascia o líder mais carismático desse partido: o advogado Álvaro Cunhal, assim como o serralheiro mecânico, jornalista e escritor galardoado com o prémio nobel da literatura: José Saramago, comunista ortodoxo.  Também nasce o Darcy Ribeiro, ex ministro da Educação no Brasil. 

Acontecimentos carismáticos com nascimentos de pessoas ilustres que à sua maneira fizeram a diferença. Mas essas eu não conheci pessoalmente. Já a minha avó, que nasceu nesse mesmo ano no Vale de Santiago, concelho de Odemira, no Alentejo, palco em 1918 duma greve geral pela União Operária Nacional reprimida e que levou muitos dos conterrâneos da minha avó a serem presos e deportados para África.

Estas mãos são dela. Mãos de quem trabalhou uma vida inteira. Mãos que contou as moedas para dignamente não ficar a dever nada a ninguém nem ter a fama de migrante desonesta e pouco confiável.  " Não fiques com nada que não é teu!", sempre me lembrava e eu sempre recordo. Recordo que ela queria ser alfabetizadora e não pode realizar esse sonho, mesmo tendo a "sorte" de ter sido alfabetizada num período de republicanismo conturbado que antecede o fascismo. Lembro que ela foi um exemplo de amor e cuidado mesmo com as suas tristezas vividas ao longo da vida. Recordo-lhe que se hoje escrevo, entre tantas outras atividades, é para honra-la e devolver o que não é nosso, mantendo a nossa identidade. " Vó, não somos madames mas temos que nos lembrar em não confundir privilégio com direitos. Temos direito à educação, à moradia, à nutrição, à saúde, a realizar o que sonhamos e faz sentido para nós. a sermos felizes,  e a não permiteir que nos destratem, caluniem e difamem em toda e qualquer circunstância porque somos mulheres e portuguesas. Eu sou do mundo, mas primeiro que tudo sou portuguesa dentro destas divisões de território impostas. Gratidão e parabéns por teres feito questão que as tuas filhas, onde está incluida a minha mãe, pudessem estudar mesmo em tempos tão obscuros como o do fascismo. Não foste o exemplo de mulher emancipada, mas abriste caminhos. Um abraço eterno e profundo que atravessa o tempo e o espaço."

Rosária dos Santos ( 1922-2014)

créditos: João Alexandre Pereira

A Piu

Brasil, 15/11/2022

Errata: O Álvaro Cunhal nasceu em 1913.

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