sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

A MINHA AVÓ

A minha avó Maria do Carmo era a minha avó Maria do Carmo, como poderia ter sido avó Maria do Karma. Não sei ao certo se ela tinha algum karma. Não entendo muito dessas coisas e aquela matéria que todos os domingos vem no suplemento do jornal da cidade não é lá muito convincente, apesar de divertida. Bom, mas até que posso intuir qual poderia ser o seu karma dadas as circunstâncias da sua vida. Nasceu mulher em duros tempos. Sempre comeu pão duro, pois não se podia deitar fora o pão. Havia pão acabadinho de sair do forno. Mas tinha de se poupar. Eu acho que a minha avó sempre teve dentes muito rijos. Não me lembro de ter placa dentária. Pelo menos nunca vi nenhuma a espreitar de dentro do copo de água na calada da noite. Não me lembro. Pois é! Não me lembro... E a minha avó não morreu assim há tanto tempo... Hmmmm Espero não deixar de ter memória como ela... Ou de a memória se trocar toda! De deixar de saber quem eu sou. A minha avó nunca viveu em São Paulo. Aqui há dias uma menina de 20 e troca o passo poucos anos, que vive em São Paulo, falou que lá os estimulos são tantos, que tem tanta coisa acontecendo que a pessoa  se perde dentro de si. 

A minha avó viveu no campo. No meio das cabras. Nunca aprendeu a juntar letras, porque tinha de juntar cabras. Nunca foi à escola porque tinha de ficar em casa a tomar conta dos irmãos. Parece que em vez de uns beijos, de vez em quando lá levava umas sapatadas. Agora que falamos disso... Eu não me lembro muito bem da minha avó me dar beijos... Bom... Normal. Quem não recebe como vai dar? Será que o seu karma foi esse? Não saber realmente o que é um beijo. A avó Maria do Karmo falava que falava. Ninguém a parava. A pessoa é que tinha de se pôr a milhas senão era um serão escutando um monólogo de palavras, histórias de capoeiras e quintais. Histórias desajeitadas como os bolos que fazia. Os bolos que de dentro duma crosta queimada surgia uma desaconchegada massa crua. É isso! A minha avó era um bolo. Um bolo que era nem doce, nem amargo. Um bolo queimado por fora e cru por dentro. A minha avó gostava de escutar os pássaros dentro de uma gaiola tapada. A minha avó era um pássaro dentro duma gaiola tapada?

Encontro muitas pessoas que têm nojo da pobreza. Que tem vergonha das suas raízes, porque miseráveis. Ou então a memória é curta. Comem muito queijo.  A minha avó fazia queijos frescos. Hmmm tão bom! Depois veio a febre de Malta e a malta, o pessoal, ficou febril. Eu até acho que é uma espécie de febre europeia. Uma febre pelo asséptico. Mas tudo bem, são as leis do mercado.
Se a minha avó fosse um queijo seria daqueles duros que o meu outro avô tinha na prateleira da despensa.  Daqueles que a pessoa tenta cortar e desfaz-se em lascas.Ufffff Mas esse queijo não! Que cheiro! A minha avó, apesar de humilde, não cheirava mal. Mas até acho que um abraço mais forte ou beijo bem dado a teria desfeito em lascas como esse queijo duro, mas delicioso.

A minha avó nunca se emancipou. Na sua época quem se emancipava era uma elite. A emancipação leva tempo. Apesar de ter morrido com 80 e não sei quantos anos e troca o passo já não foi a tempo de se emancipar.

E nós? Ainda vamos a tempo de nos emancipar?

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