De forma inédita ou quase inédita, em 2022 a 59ª edição da mais antiga bienal de arte, que acontece em Veneza, dá prioridade a artistas mulheres, negros e indígenas. Cecilia Alemani, a curadora italiana, radicada em Nova York, pede emprestado o título do livro Leonara Carrington Il latte dei sogni (O leite dos sonhos, em português) para lançar a temática em que é descrito um mundo mágico onde a vida é constantemente reformulada. Há que ressaltar ainda que pela primeira vez a curadoria está a cargo de uma mulher que optou por 80% dos expositores serem de mulheres artistas. Em entrevista perguntaram-lhe se era uma Bienal de mulheres ao que a mesma respondeu contundentemente que nunca ninguém perguntou se as outras bienais eram de homens. Devido ao confinamento do Covid-19, a curadora viu-se “obrigada” a conhecer os artistas convidados, ainda vivos, virtualmente. Estas reuniões chamaram a atenção de Cecilia Alemani para três temas principais. O primeiro foi a representação dos corpos e suas mutações/ metamorfose. “ Para dar conta deste debate, a curadora priorizou obras que questionam a representação hegemônica do corpo humano (ocidental, masculino e branco) consagrada pelos modelos iluministas e renascentistas. Daí a opção dela em privilegiar artistas mulheres e artistas não-binários. (Lopes, 2022). O segundo tema é a relação entre indivíduos e tecnologia. O terceiro tema é a relação entre os corpos e a terra. A curadora convida assim artistas que projetem nas suas obras o fim do antropocentrismo e da hierarquia entre os seres humanos e as demais formas de vida. (Lopes, 2022). Alemani traz, então, para a Bienal artistas como o indígena brasileiro Jaider Esbell (1979/2021), a chilena Violeta Parra (1917/1967), a portuguesa radicada em Londres Paula Rego (1935/2022), a haitiana Myrlande Constant, as brasileiras Lenora de Barros, Solange Pessoa e Rosana Paulino, entre outros.
"Minha arte é sobre a tentativa de entender o local ocupado pela população negra no país e com um recorte mais específico que é o do local ocupado pela mulher negra no tecido social brasileiro." (Rosana Paulino em entrevista à revista Bravo). Nascida em 1967, em São Paulo, Rosana Paulino tem bacharel em gravura pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com especialização em gravura pelo London Print Studio e doutorado em Poéticas Visuais pela ECA/USP. A artista possui obras em importantes museus e tem participado ativamente de diversas exposições tanto no Brasil como no exterior. Rosana aborda nos seus trabalhos temas que até hoje ainda são bastantes omitidos tais como a escravidão, o papel do negro na sociedade e questões de gênero. Para a artista com uma vasta obra reconhecida internacionalmente o seu foco é trabalhar questões que a incomodam enquanto mulher negra brasileira e não apontar caminhos. Se para muitos a sua obra revela e confirma a existência e resistência de povos que foram desenraizados, escravizados e silenciados também vem confirmar que na História da Arte e no circuito artístico ainda há uma lacuna e um longo caminho a percorrer no que diz respeito à visibilidade e reconhecimento de artistas fora da lógica hegemônica do homem branco ocidental, não arrisco em dizer heterossexual, porque muitos eram e são homossexuais assumidos ou não.
Aparentemente a sua obra não foi rotulada em Veneza de estetização do sofrimento como apontaram a obra “ Barco que afundou com imigrantes africanos de Christoph Büchel em 2019, na 58ª edição. Fica então a questão: trazer para a arte o que nos incomoda e por incomodar terceiros pode ser criticada desse modo pois quem vê a obra é um público rico europeu e branco? São justamente esses que precisam de ser lembrados que por detrás de todo o glamour europeu existem tragédias a acontecer do qual os mesmos ainda são responsáveis. Interessante seria colocar em diálogo a obra de Rosana Paulino com vasta obra da artista portuguesa Paula Rego que se radicou em Londres aos 16 anos em plena ditadura fascista portuguesa, pois segundo o seu pai Portugal era impróprio para meninas crescerem e se realizarem. Quais os pontos que as unem e os espaços ainda a percorrer entre ambas no que diz respeito às questões de gênero, de democracia e ausência da mesma e colonialismo? No entanto, pode-se considerar a sua exposição “ Atlântico Vermelho” no Padrão dos Descobrimentos em Lisboa através da EGEAC Cultura em Lisboa em 2017 possa ser um pequeno passo nesse reparo histórico entre Portugal e os territórios e povos por este colonizados. A exposição ao ser apresentada no Padrão dos Descobrimentos é bastante significativo pois foi dali que saíram as caravelas e este monumento é construído como uma exaltação a esse projeto mercantilista que durou séculos, sendo responsável pela maior escravidão de todos os tempos e genocídio continuado até à atualidade, agora pelos países ex colonizados. Como portuguesa considero que as instituições do meu país podem e devem assumir a responsabilidade de resignificar narrativas e abrir espaços democráticos para narrativas de quem tem subjugado e silenciado, promovendo assim formas mais sustentáveis de entendimento e convívio com vista à valorização da vida e da sua dignidade na plenitude como o leite dos sonhos.
- ANA PIU- 06/01/2023
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