sábado, 7 de janeiro de 2023

OUTROS ENCONTROS

De forma inédita ou quase inédita, em 2022 a 59ª edição da mais antiga bienal de arte, que acontece em Veneza, dá prioridade a artistas mulheres, negros e indígenas. Cecilia Alemani, a curadora italiana, radicada em Nova York, pede emprestado o título do livro Leonara Carrington Il latte dei sogni (O leite dos sonhos, em português) para lançar a temática em que é descrito um mundo mágico onde a vida é constantemente reformulada. Há que ressaltar ainda que pela primeira vez a curadoria está a cargo de uma mulher que optou por 80% dos expositores serem de mulheres artistas. Em entrevista perguntaram-lhe se era uma Bienal de mulheres ao que a mesma respondeu contundentemente que nunca ninguém perguntou se as outras bienais eram de homens. Devido ao confinamento do Covid-19, a curadora viu-se “obrigada” a conhecer os artistas convidados, ainda vivos, virtualmente. Estas reuniões chamaram a atenção de Cecilia Alemani para três temas principais. O primeiro foi a representação dos corpos e suas mutações/ metamorfose. “ Para dar conta deste debate, a curadora priorizou obras que questionam a representação hegemônica do corpo humano (ocidental, masculino e branco) consagrada pelos modelos iluministas e renascentistas. Daí a opção dela em privilegiar artistas mulheres e artistas não-binários. (Lopes, 2022). O segundo tema é a relação entre indivíduos e tecnologia. O terceiro tema é a relação entre os corpos e a terra. A curadora convida assim artistas que projetem nas suas obras o fim do antropocentrismo e da hierarquia entre os seres humanos e as demais formas de vida. (Lopes, 2022). Alemani traz, então, para a Bienal artistas como o indígena brasileiro Jaider Esbell (1979/2021), a chilena Violeta Parra (1917/1967), a portuguesa radicada em Londres Paula Rego (1935/2022), a haitiana Myrlande Constant, as brasileiras Lenora de Barros, Solange Pessoa e Rosana Paulino, entre outros.
"Minha arte é sobre a tentativa de entender o local ocupado pela população negra no país e com um recorte mais específico que é o do local ocupado pela mulher negra no tecido social brasileiro." (Rosana Paulino em entrevista à revista Bravo). Nascida em 1967, em São Paulo, Rosana Paulino tem bacharel em gravura pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com especialização em gravura pelo London Print Studio e doutorado em Poéticas Visuais pela ECA/USP. A artista possui obras em importantes museus e tem participado ativamente de diversas exposições tanto no Brasil como no exterior. Rosana aborda nos seus trabalhos temas que até hoje ainda são bastantes omitidos tais como a escravidão, o papel do negro na sociedade e questões de gênero. Para a artista com uma vasta obra reconhecida internacionalmente o seu foco é trabalhar questões que a incomodam enquanto mulher negra brasileira e não apontar caminhos. Se para muitos a sua obra revela e confirma a existência e resistência de povos que foram desenraizados, escravizados e silenciados também vem confirmar que na História da Arte e no circuito artístico ainda há uma lacuna e um longo caminho a percorrer no que diz respeito à visibilidade e reconhecimento de artistas fora da lógica hegemônica do homem branco ocidental, não arrisco em dizer heterossexual, porque muitos eram e são homossexuais assumidos ou não.
Aparentemente a sua obra não foi rotulada em Veneza de estetização do sofrimento como apontaram a obra “ Barco que afundou com imigrantes africanos de Christoph Büchel em 2019, na 58ª edição. Fica então a questão: trazer para a arte o que nos incomoda e por incomodar terceiros pode ser criticada desse modo pois quem vê a obra é um público rico europeu e branco? São justamente esses que precisam de ser lembrados que por detrás de todo o glamour europeu existem tragédias a acontecer do qual os mesmos ainda são responsáveis. Interessante seria colocar em diálogo a obra de Rosana Paulino com vasta obra da artista portuguesa Paula Rego que se radicou em Londres aos 16 anos em plena ditadura fascista portuguesa, pois segundo o seu pai Portugal era impróprio para meninas crescerem e se realizarem. Quais os pontos que as unem e os espaços ainda a percorrer entre ambas no que diz respeito às questões de gênero, de democracia e ausência da mesma e colonialismo? No entanto, pode-se considerar a sua exposição “ Atlântico Vermelho” no Padrão dos Descobrimentos em Lisboa através da EGEAC Cultura em Lisboa em 2017 possa ser um pequeno passo nesse reparo histórico entre Portugal e os territórios e povos por este colonizados. A exposição ao ser apresentada no Padrão dos Descobrimentos é bastante significativo pois foi dali que saíram as caravelas e este monumento é construído como uma exaltação a esse projeto mercantilista que durou séculos, sendo responsável pela maior escravidão de todos os tempos e genocídio continuado até à atualidade, agora pelos países ex colonizados. Como portuguesa considero que as instituições do meu país podem e devem assumir a responsabilidade de resignificar narrativas e abrir espaços democráticos para narrativas de quem tem subjugado e silenciado, promovendo assim formas mais sustentáveis de entendimento e convívio com vista à valorização da vida e da sua dignidade na plenitude como o leite dos sonhos.
- ANA PIU- 06/01/2023
Texto para o módulo Bienal de Veneza dum curso de História da Arte

Rosana Paulino, 59ª Bienal de Veneza 2022

Rosana Paulino, Assentamentos, Pinacoteca de São Paulo

Rosana Paulino, Atlântico Vermelho, Padrão dos Descobrimentos, Lisboa 2017


Paula Rego, 59ª Bienal de Veneza 2022

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