sábado, 7 de janeiro de 2017

OS IMPASSES PARA MIM DE PARATY


Chegando a Paraty a meio de um qualquer dia de Janeiro, a roupa cola-se ao corpo e a vontade primeira é dar um mergulho no mar ou procurar o aconchego duma cachoeira no meio da vegetação refrescante. Mas Paraty aguarda a nossa curiosidade de conhecer melhor os últimos séculos, desde a chegada dos nossos ancestrais. Dos meus ancestrais, vá. Na primeira pessoa falo, pois sou portuguesa nascida e criada em terras lusas, residente há cinco anos em terras brasileiras. Mas uma grande parte daqueles que aqui vivem são, duma maneira ou outra, descendentes de portugueses. Chegar a Paraty e como se viajássemos cinco séculos no tempo e revisitássemos Portugal em tom tropical. O centro histórico é serpenteado por ruas feitas de pedra que vinham de Portugal, a arquitetura é semelhante a muitas cidades de Portugal, mas com as portadas das janelas e portas mais largas e coloridas. Os telhados definiam a riqueza dos seus habitantes e proprietários. Havia o telhado com eira, beira e tribeira. Outro só com eira e beira, outros ainda sem eira nem beira. Daí a expressão : “Sem eira nem beira” ( aos caídos, não ter onde cair morto); assim como ter “Eira, beira e tribeira” era ter uma riqueza maior. Quem perdia tudo e não se confirmava poderia perder as estribeiras, perder a paciência…
Ao caminhar pelo centro histórico podemos encarar as igrejas que eram só para mulheres, outras só para homens e as igrejas onde era permitida a entrada dos escravos, onde as mulheres poderiam se misturar. Há também a rua mais florida, onde outrora era onde as “mulheres da vida” satisfaziam os impulsos e instintos viris das cabeças patriarcais. As ruas são serpenteadas para confundir os piratas franceses que queriam tomar de assalto aquele, outrora, importante porto de exportação de ouro.
Hoje Paraty é um centro turístico de cara limpa com lojas de griffe, artesanato fashion, casa da cultura, ateliês de artistas, restaurantes, cachaçarias, sorveterias, etc etc.
No dia 4 de Janeiro de 2017 conheci essa tão falada cidade. Alguns indígenas expunham na rua os seus artesanatos. Confesso que tive um pensamento preconceituoso, aqueles pensamentos piloto automático carentes de alteridade. Pensei que aqueles indígenas que ali estavam de cocar na cabeça, tronco nu pintado de short e tênis eram um sucedâneo para turista fotografar… Uma espécie de indígenas não genuínos… Urbanizados, turistizados. Perdão. Antes fossem… Esse pensamento também não digno de que estudou antropologia...
Ao caminhar pela rua, as minhas filhas quiseram tomar um sorvete. Um moço dum bar falou que era melhor não continuar naquela rua, pois estava havendo um impasse. Isto é, os indígenas estavam a resistir aos policiais que estavam a impedir que estes vendessem o seu artesanato na rua. Mais uma razão para me aproximar. Pois é! “Vocês portugueses vieram-NOS colonizar.” Vocês quem? De que lugar é que alguém fala isso, visto esse projeto de estigmatização e ao limite de eliminação do povo indígena continuar em curso?
Um dos indígenas falava para quem quisesse ouvir que os policiais já tinham ido na aldeia deles quebrar o artesanato, que é um trabalho não é um crime, e usar a força policial para bater nos mesmos. O que deixou as suas crianças assustadas. Bonito serviço! Que cartão de visita para os visitantes. Mas ainda bem que temos essa oportunidade de presenciar, pois lá no meio do mato muitos de nós não testemunhamos essa boçalidade secular.
Lamento publicamente, enquanto sujeito histórico, por tudo o que tem sucedido ao povo nativo desta terra desde 1500 até hoje. E como cidadã sinto-me na obrigação ética de escrever nas redes sociais, nomeadamente em páginas de foro turístico. E agora pergunto: qual o posicionamento dos comerciantes em relação a isso? Compactuam com as forças policiais? Nunca conjecturaram serem aliados dessas pessoas, comprando o seu artesanato, cedendo espaço para estes venderem, chamando-os para que estes partilhassem a sua cultura ancestral e tão rica? Se assim não for, demonstra alguma falta de visão não só humanista como mercantilista, já que Paraty hoje é feita para lucrar com o turismo.
Urge o povo indígena recuperar a sua dignidade sem paternalismo do branco. Não merecem serem tratados de qualquer maneira, deixando-os sem eira nem beira. Mais do que um direito é um dever histórico quebrar a lógica da boçalidade secular. É de perder as estribeiras esse padrão de comportamento….
Haux haux ( gratidão) para quem teve a paciência e ler este texto até ao fim
Haux haux a todas as oportunidades que tenho tido em conhecer e mergulhar na sabedoria indígena, na sabedoria da floresta. Haux haux
Ana Piu
Brasil, 07.01.2017

Sem comentários:

Enviar um comentário