quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

O VOO DAS MARITACAS- SÉRIE: ACERCA DE NÓS, SERES HUMANOS

" Mantida à margem do mundo, a mulher não pode definir-se objectivamente através desse mundo e o seu mistério cobre apenas um vazio.
Além disso, acontece que, como todos os oprimidos, dissimula deliberadamente a sua figura objectiva; o escravo, o criado, o indígena, todos os que dependem dos caprichos de um senhor, aprenderam a opor-lhe um sorriso imutável ou uma impossibilidade enigmática; escondem cuidadosamente os seus verdadeiros sentimentos, as suas verdadeiras condutas. À mulher também ensinaram, desde a  adolescência a mentir aos homens, a trapacear, a usar de subterfúgios. Chega-se a eles com máscaras: é prudente, hipócrita, comediante."

BEAUVOIR, Simone " O segundo sexo- volume1"- ed. Gallimard 1949/ Bertrand Editora Lisboa: 1987

Comecei o dia de hoje escrevendo às 6.30 da manhã. Escrever liberta. Umas vezes é para partilhar outras para organizar ideias. Às 11.30 ouvi uma história inspiradora para escrever um conto. A maritaca de asa partida do quintal onde faço yoga  voou. Abriu as asas e voou. História bonita que num outro tempo romancearei.

 A esta altura do campeonato, muitos dos que me conhecem pessoalmente dirão: "Olha! A Ana a fazer yoga! Bem precisa!" Outros, ou os mesmos, ainda dirão: "Oh p'ra ela a  escrever num jeito  abrasileirado!" Nesta última terei de recorrer ao yoga. Ah pois! Porque essa discussão aí já é chão que deu uvas e como não aprecio uvas desde criança para mim não é discussão. Resumindo e concluindo: a língua é viva e medir forças de qual é a mais bem falada é conversa para boi dormir.

Volto à leitura da Beauvoir, agora o segundo volume. É certo que foi escrito em 1949 e que alguns aspectos, aparentemente, já se ultrapassaram. Mas analisando mais de de perto, parece fazer-se sentir uma regressão ou algo latente que sempre lá esteve e numa ou noutra oportunidade manifesta-se.

A violência doméstica existe, o assédio moral também. Já só para falar destes dois itens de abuso de confiança entre aqueles que nos estão mais próximos. O assédio moral por vezes é mais subtil ( esta faço questão de escrever em português de  Portugal, pois soletro  o "b"). Assédio é quando alguém considera que pode falar ou tratar o outro de qualquer jeito, em alguns casos sem conhecimento de causa ou com base na mentira para poder exercer o seu controle sobre o seu alvo. Esse assédio é muito frequente no meio profissional, familiar, "entre amigos" e "amoroso". E tanto homens como mulheres, e outros géneros assumidos podem exercer tal aberração. É nosso dever protegermos-nos disso e estarmos vigilantes para não assumirmos também nós esse lugar de carrasco. Sim, de boas intenções o mundo está cheio. E muitas vezes, como um jogo de crianças, assumimos o papel de "Ah! Ele também fez!  É ele que é agora está a ser assim!" Vou dar um dois exemplos bastantes concretos: há cinco anos que vim de Portugal para viver no Brasil. Até hoje tento respirar fundo para saber lidar com os resquícios de escravatura  assim como com o machismo, muitas vezes "cordial", tanto da parte dos homens como das mulheres. Mas isso não significa que em Portugal e no resto da Europa esses resquícios e esse machismo não existam. Existem. E o grande resquício do colonialismo é a de que os europeus acharem que nesse aspecto já estão muito à frente... 'Granda' piada. Vê-se como recebem os refugiados. Vê-se o índice de violência doméstica de norte a sul da Europa. É preciso muita yoga para relevar essa arrogância que constata exatamente esse resquício de colonialismo balofo, ultrapassado mas em vigência em algumas almas que se acham muito p'ra frentex. Defendem certas e determinadas causas ditas "pacifistas" para justificarem que os outros é que são mauzões e eles são santinhos, socialmente falando. Já para não falar do foro pessoal. Não podemos esquecer que a descolonização por parte da Inglaterra, França e outros foi feita no final da segunda grande guerra e que Portugal foi o último país a descolonizar (1975) os países africanos. Na geração dos meus pais batia-se no peito durante a guerra colonial: "Angola é nossa! Angola é nossa!" Isso já fala muita coisa. Ooops já diz muita coisa, para ser fiel ao português de Portugal. ;) Na verdade não há mistério nenhum. A questão está naquilo que nos move, na consciência que temos ou não de nós e do outro. E ser cúmplice duma mentira só para não se chatear é-se duplamente mentiroso. Seja homem, seja mulher, seja que género for. Género ou gênero. Fica à escolha do freguês, visto sermos feitos de escolhas. Da escolha de como nos queremos relacionar.


A Piu
Brasil, 11.01.2017


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