Na primeira manhã, antes da segunda noite, à seguir à primeira em que sob a tempestade o homem submeteu-se a um duelo ao sol da meia noite obscurecido pelas negras nuvens, dormitava contorcendo-se sobre as feridas abertas. Ainda chovia e abatia-se um silêncio ensurdecedor, como aquele que se faz ouvir na Escandinávia até mesmo na Islândia e Gronelândia. Embora na Islândia era um pouco diferente. Lá os golfinhos organizam-se e viram os bancos de pernas para o ar.
A tristeza é um direito- assobiava o vento como um sussurro- Só assim podemos abraçar a noite escura que habita dentro de nós e a trazer para a luz do dia.
Mas depois da mulher ir embora, embora tivesse insistido para ficar e depois desistido e outra vez insistido até se desenvencilhar desse abuso emocional que tinha escolhido para si mesma, o homem sentia-se profundamente triste e achava que aquele era um estado que determinava o seu carácter. Tal como a mulher, não se permitia respirar e considerar-se merecedor da felicidade como estado de simplicidade e humildade diante do grande mistério da vida.
Adormeceu e sonhou com o amor, mas mesmo essa andava um tanto distorcido guarnecido de domínio, possessão, complexo de superioridade e inferioridade. O grande mistério cósmico estava encoberto por uma grande névoa de confusão, de inconsciência que cada ser é uma partícula ínfima e que simultaneamente é o grande mistério da criação imensurável. Sonhou também com uma mulher deitada num quarto vazio, na beira da estrada. Do lado dessa mulher a estava um urubu que dizia que iria comê-la, pois ela estava morta. A mulher falou que não estava morta, mas urubu disse que ela estava sozinha. Então, o homem entrou e sufocou o urubu. Chamou a mulher, mas esta não se levantou. Ele continuou solitário mas feliz por ter-lhe salvo a vida. A mulher sentia-se agradecida mas em silêncio.
O homem sentia uma profunda tristeza, fruto de memórias antigas muito antes dele, que o impedia de amar na plenitude. Assim se passava com a mulher com quem ele lutara ao sol da meia noite coberta pela lua em quarto minguante. Assim se passava com muitos homens e muitas mulheres no mundo inteiro desde tempos imemoriais. Diante da tristeza sentiu raiva, manifestação máxima da tristeza. Uma incapacidade aparente de na plenitude amar. Urgia limpar essas memórias, mas isso ainda não sabia. Então sentiu raiva. Mas do caos tudo se pode re inventar. Nessa noite choveram folhas. Folhas mágicas que limpam as raivas e ressentimentos. Mas isso ainda estava por ser descoberto pelo homem.
TERCEIRA NOITE: A RAIVA
A Piu
Br, 3012/2017
A
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