" - E o senhor general despreza as nossas tradições?
- Olhe, meu caro, se por tradições entendermos crimes como envenenar pessoas, queimar crianças, mutilar mulheres, sim, desprezo. Há tradições boas e tradições más. Acho estúpido apoiar uma qualquer prática apenas por ser antiga. Seguindo a mesma lógica teríamos de defender a escravatura. Os meus bisavôs, pretos como eu e você, eram escravocratas. Devo recuperar a tradição familiar?
- Não! Escravatura não!
-- Ainda bem. Olhe, conheço muito boa gente, aqui em Luanda, que tem imenso orgulho no passado escravocrata da família. Os escravos eram o ouro negro da época (...) Havendo procura, havia oferta. Você gosta de samba?
- Gosto. Gosto muito.
- Então agradeça aos meus bisavós. Se eles não tivessem vendido escravos para o Brasil hoje você não poderia escutar Paulinho da Viola (...) Se não fosse a escravatura o Brasil não teria capoeira, não teria vatapá nem o candomblé. Sem a contribuição dos meus avós e de todas as grandes famílias escravocratas desta nossa bela cidade de São Paulo da Assunção de Luanda, o Brasil não existiria.
(...) olhou-o aterrado. (...) a escravatura foi uma coisa boa?
- Não. Escravizar alguém é um crime abominável. O tráfico negreiro enriqueceu algumas famílias africanas, não falando dos europeus, claro, mas arruinou o continente.
AGUALUSA, José Eduardo ' Barroco Tropical",Dom Quixote. 2009: Portugal.
Esta escrita luso angolana, por ser honesta e (auto) responsabilizadora, é desconcertante. Penso que responde em parte aquele verso do querido Mateus Aleluia:
' Quero contar o sofrimento que eu passei sem razão
O meu lamento se criou na escravidãoQue forçado passei"
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