- Você não acha meio cretino nos enchendo com erudição, enquanto as coisas estão acontendo lá fora? Tanto amigo da gente sendo preso, torturado. Tanta desinformação da nossa própria realidade.
- Ah! Que saco! Você pode se dar ao luxo. Eu nunca tive acesso a essas reliquias.
- Você já tentou se engajar em algum grupo?
- Já! E me dei mal.
- Estou-me sentindo meio vazio.
- Porque você tem vergonha de ser rico. Se você for de cana seu pai tira na hora.
- Vai à merda, Torres!
- É isso mesmo! Você tem tudo o que quer. Garotas, faculdade, lojas.
- O tédio é pior do que o câncer.
- Ahhh! O tédio é pior do que o câncer!!!...Ah! Burguesinho babaca!
-Sim, sou burguês. E daí? O que é que tem? Cesário Verde também era.
- Mas que megalomania, hein Téo! O Cesário Verde era doente, frágil. Você é forte que nem um bezerro.
- Vai fazer a apologia da fragilidade?
- Eu não! Você é que é complexado. Vive no analista para se redimir da sua fortuna.
- Não, Torres.
- Você tem inveja da minha erudição.
- Caguei! O que te falta é vivência! Eu sou maldito porque nasci maldito. Sou filho bastardo como os grandes visionários: Moisés, Buda, Mahomé, Cristo.
- Você 'tá embaralhando tudo.
- Eu estou 100 anos na sua frente, Eu fui hippie antes de pintar os hippies. Eu queimava fumo antes de virar coisa de burguês. Eu aprendi a escrever lendo Marcelo K., Briggite Bijou. Lia Verlaine e Guape e me masturbava.
- Tudo bem! Tudo bem! Só que você parou no tempo. Eu não. Eu continuei. Você tem que admitir, Torres. Eu é que te reciclei culturalmente.
- Ah! Reciclar o cacete. Eu que dei um tempo para viver como Rimbaud.
- Sabe qual o seu problema? É que você não consegue colocar no papel toda essa porralouquice.
Trecho dum diálogo do filme 'Alma Corsária' (1993) de Carlos Reichebach.
Para mim este e um outro diálogo que citarei no próximo texto são a cereja do bolo deste filme. Hilário! Hilariante. Penso que fala por si mesmo, porém cada ser vivente fará a sua interpretação. Tem um lado cómico, mesmo que os tempos em que os personagens se inserem sejam sinistros. Estão em plena ditadura militar. É uma espécie de conversa de adolescentes tardios com um certo engajamento ideológico. Ambos teem a sua razão e por isso comparam-se nos seus recortes sociais e competem entre si conhecimento e práticas. É um retrato interessante de dois jovens homens de São Paulo um tanto frustrados com a sua existência. Mais tarde, uns anos mais tarde, o espectador assiste ao lançamento dum livro de Torres num qualquer boteco de São Paulo envolto numa fauna humana à laia de filme do Pasolini ou do Felini. Ah! Ainda tem uma cena sem texto do Torres a despir-se de várias camisetas com o busto dos figurões revolucionários até chegar a uma preta com um A. ;) Aí ela lança os braços para o alto, mas em vez de gooleee, grita: EVOÉ! Ihihih Quem nunca presenciou ou passou por uma cena assim?
A Piu
Campinas SP 04/07/2021
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