segunda-feira, 26 de março de 2012

OS CORDEIRINHOS DA FÉ


Diário de bordo dum final de semana dum final dum mês do final duma suposta era

Sexta-feira

Dou de caras com vários pensamentos e frases ao longo do dia inscritas em sanitários públicos. Um bom campo para fazer etnografia…

De manhã: Na caixa do rolo de papel higiénico, bem no meio:

Deus não existe/ religião faz mal/ mas fé fundamental

Consigo até visualizar a pessoa que escreveu, mas encontro alguma incoerência. Alguém que estuda ciências sociais ou filosofia afirmar que a religião faz mal… Talvez Deus não exista para a dita pessoa, mas existem mil formas de pensar e sentir Deus. Cada um sabe que Deus leva dentro de si, se o quer levar ou não. Quanto a mim dispenso ensaboadelas de mentes caridosas que tentam impingir revistinhas de como encontrar o caminho da luz. Já tentei trocar com umas tantas revistas anarquistas (UTOPIA- rev. portuguesa), mas a pessoa iluminada e ciente que mais ninguém pensa no mundo que não ela não aceitou a minha proposta franca e penso que leal. Eu leio aquilo que tu acreditas e tu lês aquilo que eu acredito. E podemos dialogar a partir daí. Mas não houve diálogo. Pena…

Quanto à fé, esta é fundamental. E tenho fé que um dia consigamos todos dialogar, mesmo que não estejamos sempre de acordo uns com os outros. Ainda bem!! Que chato seria não haver estimulo espiritual e intelectual!

Bom, adiante. Rapidamente reformulo a frase na minha cabeça:
Se Deus existe/a Igreja trata-o mal/ a religião é com cada um/ e a fé é fundamental

Por cima da frase que eu reformulei ainda se encontra outra:
All we need is love

Claro! Obvious! Bem, mais ou menos… O óbvio nem sempre é consensual.

De tarde

Encaro num outro sanitário a seguinte frase:

Sou totalmente dependente do amor de Deus pai, é o melhor amor de todos, experimente ser dependente desse amor também.

Olha!! Passou por aqui uma alma caridosa que em poucas palavras tentou espalhar o caminho da luz e não foi preciso revistinha nem convites para missas e afins.
Mas a frase assusta-me um pouco. “Sou totalmente dependente (…) experimente ser dependente desse amor também”. Isto é um convite à dependência!! E que amor será esse? Um amor cego que me esqueço de mim? Será um amor contendo uma substância química manhosa? É pá! Não me apetece. Quero ser livre. Quero ter liberdade para amar o que eu bem quiser! E quem eu bem quiser! E como será o Deus pai? Um velhinho simpático de barbas que consola e dá coragem ou um velhinho que se faz passar por simpático, criticando, moralizando, reprimindo? Esse Deus pai tem gravata e pede uma bula do pessoal que trabalha para colocar comida dentro de casa para os filhos? Hmmmm. Não sei, não…

De noite

Encontro uma vizinha lá no centro. A sua filha vai apresentar um teatrinho no domingo às 9 da manhã. 9 da manhã de domingo… Ai! A vizinha pergunta se sou católica. Cof... Cof... “Católica não praticante”, respondo. Acho que me saí bem, não tenho bem a certeza do impacto causado. Poderia ter dito que era budista, talvez a senhora se reconfortasse em eu transportar alguma fé. Hmmm. Ser católica não praticante dá cá uma graça!... Ou se é ou não se é! É como dizer: “Sou do partido, mas não tenho votado neles.” Mas para muita malta dá jeito ser católico não praticante. Sempre se pode usufruir dos comes e bebes dos casamentos e batizados. “Não pratico, mas até me caso pela igreja". "Também está bem…", penso. “É para fazer a vontade à família”, argumentam. "Está ainda mais bem", volto a pensar.

Mais tarde

Chegando com sacolas do supermercado e alguns afazeres domésticos pendentes. Carros estacionados na rua e pessoas saindo, vestidas com algum cuidado especial. Hmmm. Haverá casamento, batizado na vizinhaça?

Junto ao portão um senhor simpático e hesitante pergunta-me: “Se quiserem vir cantar uns hinos são bem vindas.” (Bem, por hoje já estou servida de hinos. Já escutei o hino brasileiro lá na escola fundamental. Das primeiras vezes estranhei, depois entranhei. Soou ao inicio a resquícios de ditadura militar, mas visto noutro prisma é uma forma da criançada ter algum sentido identitário… Gosto da parte do grito do Ipiranga… E até que a melodia é alegre…) Agradeço cordialmente ao senhor dos hinos e continuo a minha tarefa doméstica de chegar a casa e vestir o papel de fada do lar.
A missa com os hinos na casa do vizinho durou o tempo de todos os afazeres domésticos. Umas duas horitas e meia. Mais coisa menos coisa. Coisa pouca. Confesso que até achei simpático, aquele ritual. Pelo menos não tinha aquelas colunas estridentes proclamando o show da fé. E servia de musica de fundo.

Sábado

Encontro sempre uns papelinhos na caixa do correio convidando a sessões espirituais. Outro dia havia um dos Cordeirinhos da fé. Gosto do conceito. Como serão homens feitos feito cordeirinhos da fé? Será que ser cordeirinho é mais tranquilo que ser carneiro? Não se diz cordeirada ou se diz? Mas carneirada diz-se.

Domingo

- Quem foi a primeira pessoa a ter piolhos? Como é que eles apareceram?
- Sei lá! Antes dos piolhos saltarem para a cabeça eles já existiam, depois descobriram uma cabeça quentinha para se aquecerem e procriarem. E gostam da movida de andarem de cabeça em cabeça.
- A jibóia é a cobra mais perigosa do mundo?
- Hmmm, não sei. Deve ser a anaconda…
- O que é que ela faz?
- Hmmm. Come as pessoas…
- Tu sentias o quê se visses uma?
- Tinha medo.
- Fugias?
- De fininho.
- Eu cá prefiro morrer tranquila do que morrer aos solavancos.
- Olha! Pudera! (Mas também depende dos solavancos. Isto eu não disse à criaturinha, claro! eheheheh)
- Há uma coisa que me faz confusão. Quem foi a primeira pessoa a existir?
- Não houve uma primeira pessoa a existir. Houve uma evolução na espécie. Podes consultar um livro sobre História Natural (old fashion… podia ter dito à criaturinha que podia ir ao google…) Há quem defenda que foram Adão e Eva os primeiros seres humanos na terra, mas isso é uma metáfora. Eu leio a bíblia como um livro de poesia, uma metáfora. Não é que aquilo tenha acontecido realmente assim. É um livro que passa determinados valores às pessoas.
- Então se Deus criou o homem e a mulher quem criou Deus?
- Foi o homem e a mulher, não? Ahahahaha. Boa pergunta!! Give me five! Bom, mas acreditarmos em algo é estarmos ligados ao cosmos. Religião é estarmos ligados a nós e ao que nos rodeia.
- E o que é o cosmos?

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