segunda-feira, 26 de março de 2012

DUM PARDO DESCARTÁVEL

Descartar – v. 1 tr.dir. , intr.  pron. Rejeitar uma ou mais cartas (…) 2. tr.dir. Deitar fora depois de usar 3. tr. Libertar-se do que é incómodo ou inútil.

Pardo, a –adj. 1 que tem uma cor indefinida, que varia entre o branco e o preto ou entre o amarelo e o castanho, * pardo n.m.2 cor escura, que varia entre o branco e o preto. Papel pardo.



Papelinho daqui, papelinho dali, carimbo autenticado e consularizado acolá e muita e muita taxa para pagar veio-mo parar às mãos um formulário da Policia Federal para preencher com a devida atenção. Num dos campos pedia-me a dita entidade para definir a cor da minha pele: Albina; Amarela; Branca; Branca Moreno; Branco Sanguíneo; Mestiça Clara; Mestiça Escura; Mulata; Negra; Parda/Mulata. Epa! E agora!? Olhei para a folha, belisquei-me… Era mesmo verdade. Uma mancha vermelhinha espreitou do antebraço onde o tom descolora e as veias são mais azuis (parece-me a mim que toda a gente tem sangue vermelho, apesar das veias se afigurarem azuis ou não. Parece-me…).

Olhei para mim, olhei lá para fora. Estava sol e eu já tinha apanhado uma corzinha. Senti-me Branca Morena ou Mestiça Clara? Olhando de relance no reflexo da porta de vidro adivinhei mouros e franceses napoleónicos a passarinharem nas terras onde nasci, já não falando dos bárbaros, dos visigodos, dos romanos e outros tantos que deram jus à grande misturada que nós todos somos em terras deste mundo. Mas a pergunta deixou-me um pouco doente. Senti-me amarela. Olhando para o papel dirigi-me às autoridades para esclarecer a minha dúvida quanto à cor que transporto em minha derme. Quingas!!! Fui contra a parede! Fiquei com uma nódoa negra na testa e outra no nariz. Serei negra, agora? Ou mulata?

Imaginei como seria fashion ser albina numa vernissage em São Paulo, Tokio, Londres, Berlin ou em New York. Ou até mesmo na querida Lissabone, ou no Oporto invicto ou no Paris da França.

No final, coloquei branca, mas até achei que poderia ter colocado parda. Mas a minha dúvida persistiu. E aquela gente que é, indiscutivelmente, filha do tal branco e da tal negra ou do tal amarelo e da mestiça clara e se sentem brancos ou mestiços escuros como é que fica? Daí veio uma explicação “politicamente correta” dum antropólogo: “É uma forma das pessoas se auto caracterizarem para poderem usufruir de politicas de inserção.” Confesso que a explicação não me convenceu, mas não me contrapus pois não conheço o suficiente da sociedade brasileira e contrapor para um antropólogo terei que me fundamentar. Mas não me convenceu. Resolver a descriminação mantendo a diferenciação de cor parece-me que é perpetuar a descriminação. De fato, quem não é branco tem um acesso mais dificultado a uma universidade e a determinadas ascensões sociais. Porém, se o Brasil está em ascensão sócio politica o programa poderá ser o de ensino de qualidade gratuito para todos, sem distinção de cor, classe social e género.

Quem diz o Brasil diz outro país qualquer. Sim, porque hoje o país da igualdade, fraternidade e solidariedade está chutando o estrangeiro para fora. Descartando. Estando a Europa a virar à direita cá com uma pinta quem for pinta no panorama branco vai andando, descartando-se.

Hoje, descartar é um conceito bastante em voga, principalmente no estilo de vida do consome e deita fora. Hoje descartam-se copos nos mega festivais de música como se descartam pessoas. Descartam-se pessoas nas relações de trabalho, nas relações afectivas. Descarta-se a palavra Honra. Honra!? Bilhaqueeee! Que palavra tão old fashion. Demodé, diria! Para quê me comprometer com algo ou alguém? Não apareço, não digo nada e a pessoa vai entender… E a cartada continua! Jogada daqui, jogada dali. Amigos como sempre que a vida continua. E a cabeça se confunde entre onde começa a diplomacia e acaba em hipocrisia.

Descartam-se os antigos escravos que hoje o são de outra forma, descartam-se o ex combatentes de guerras coloniais e civis para um canto da sociedade e depois rotulamos de bêbados, loucos, que não querem trabalhar. Talvez sejam isso tudo e se aproveitam de tal para se encostarem à bananeira, mas as causas são muito mais profundas. E por vezes assusta irmos à cave e dar uma limpeza geral. Pois, porque mais que afirmemos que os fantasmas não existem e que já não temos medo do escuro, o escuro está lá e os nossos fantasmas também.

Conheci um “jovem rapaz” que no escuro da noite o que ressaltava era o seu sorriso grande e largo. Um sorriso branco em meia-lua a saltar dum rosto escuro. Hoje esse sorriso cheio de dentes já não existe. Dilui-se entre álcool e água da chuva que escoa até aos esgotos. Ele tratou de aniquilar esse sorriso que ainda teimava em sobreviver a uma guerra estúpida, como todas as outras. Por mais que tentemos imaginar o que sertá sobreviver a uma guerra, nunca saberemos realmente o que isso é. De regresso à sua terra natal o seu sorriso desdentado fará coro com outros sorrisos desdentados. E hoje na sua terra natal, Luanda, o colonialismo ganha outros contornos. Os ex combatentes são descartáveis, como o pobre é descartável. Hoje em Luanda o negro, o mulato também pode e tem dinheiro, poder mas dentro do mesmo paradigma de desigualdade. A História vai-se escrevendo num papel pardo que ora serve para embrulhar pão gourmet, ora serve para estancar um pouco das feridas deixadas pelas circunstâncias que nós, de uma maneira ou outra, permitimos que continuem a acontecer.

E vivam as rodas de ciranda, e o maracatu e bumba meu boi com branco, preto, mulato, amarelos, azuis, vermelhos. Obrigada, Patrícia por esse bonito sábado, onde ir ao encontro das nossa raízes é ir ao encontro do outro nas suas semelhanças e diferenças!!

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