segunda-feira, 19 de março de 2012

SEM UIS NEM AIS

    Aqui há uns tempos, numa dessas conversas virtuais num desses movimentos sociais existentes no facebook, um alguém se referia a outra alguém, sem conhecimento de causa, como sendo da elite cultural de Portugal. Ora o segundo alguém, inicialmente, sentiu um nó no estômago, depois os olhos abriram-se entre a estupefacção e a irritação. Esse segundo alguém respirou e repetiu várias vezes: cordialidade e exercício de inteligência. Um, dois, seis, DEZ. E vai que respondeu mais ao menos assim: “Eu até gostava de conhecer essa tal elite cultural. Se ela existir deve andar à bengalada como na época do Eça de Queiroz, visto que o ministério da cultura foi desmantelado em três tempos. (…) Mas volto a perguntar: “O que é que afinal nos une, nós cidadãos comuns, a tornar este mundo mais respirável?”

    Devo ainda acrescentar que esse alguém provocatório representa muitos alguéns que povoam o nosso mundo, mundo esse que poderia ser mais respirável. E esses alguéns que sem conhecimento de causam alvitram, provocam pelo simples jogo de alvitrar e provocar demonstram ostensivamente que desconhecem o que é ser artista em Portugal e possivelmente ignoram o que é ter filhos e sustentá-los nesta conjectura (ooops lá vai palavra cara sem dar atenção ao acordo ortogrânfico. Fica o “C” ou cai o “C”?)
Esse alguém talvez desconheça o que é fazer um trabalho por convicção, dedicação, amor à camisola muitas vezes sem ganhar um tostão. O que é, no final das contas, ser precário mesmo antes da crise financeira e dos cortes dos direitos dos trabalhadores. (Hoje somos mais, não é?) O que são horas e horas de trabalho dentro duma sala. O que é investir do seu bolso em formação, seminários, simpósios…. O que é correr atrás de bolsas de estudo. O que é não querer estagnar. O que é acreditar e defender a descentralização, e se dedicar-se de corpo e alma, muitas vezes em condições precárias. O que é desejar que a arte e a cultura sejam acessíveis para todos, levando-as a lugares inóspitos, onde por vezes o que há para dizer é: “Aaaaah isso eu também sei fazer!” ou “Muito bonito! Já não via saltimbancos por aqui há uns 40 anos!”

    Bom, mas como a Vieira da Silva diz e pinta: “A poesia está na rua” (oops lamento se agora fui erudita. Mas na verdade também não sei definir o que é ser erudito).

    E na verdade, verdadinha incomoda-me mais esses alguéns que podem ser os nossos amigos, familiares, conhecidos, que por ignorância são arrogantes, do que os ditos bichos papões que governam ou desgovernam este país.

    Mas também questiono: quem é essa tal elite cultural? Como é que esse pessoal dito de esquerda se posiciona perante o próximo? Às vezes parece que a regra é ser do clube por bajulação. Não interessa muito se te dedicas ou não. Isso até levanta demasiadas questões e põe em causa os lugares cativos. É mais melhor categorizar em: fulano é do teatro de texto, sicrano é o das palhaciçes o tal do circo, beltrano é do main stream e o outro é alternativo institucionalizado, aquele é popular, o outro comercial, o seguinte intelectual, um deles conceptual, o outro armado ao revolucionário, o mesmo é cool e cria só para os amigos, porque é um performer incompreendido. Bom, categorias que facilitam engavetar em clubes da turma do Bolinha. Porém, sublinho: ÀS VEZES; para não correr o risco de ser injusta. Assim como também corro o risco de afirmar que quando há tentativas de organização, de criação de sindicatos de artistas e afins toda a gente tenta se auto promover e anseia por protagonismo. Não é verdade, mas é recorrente. Mas como é recorrente o que era um início acaba por morrer de morte prematura.

    Aqui para nós que toda a gente nos ouve: Qual razão desse tal discurso do “nós fomos os primeiros em Portugal…”, “”Nós somos os únicos….”? É pá!... Quem trabalha realmente não tem tempo para tal paleio. Um paleio que revela pequenezzzz. Uma espécie de choque de egos. Quem trabalha, trabalha e sabe, intimamente, qual o valor do seu trabalho e quanto custa a alcançar esse patamar de excelência. E o quanto é bom haver mais gente a seguir na mesma viagem, porque sabemos que não estamos sós, mesmo quando assim nos sentimos. E partilhar conhecimentos, dúvidas, conquistas, devaneios realizáveis dá saúde e faz crescer. Ou estarei enganada?

    Parece-me que a questão efectiva de não nos conseguirmos mobilizar é pelo simples facto de acharmos que o que nós somos e fazemos é que é, e que o outro não vale o bastante. E daí segue para a falta de sentido organizativo porque não há escuta. Não damos a importância suficiente a nós e a quem está ao nosso lado para termos a capacidade de seguir em frente. Acaba por não haver um diálogo construtivo. Cada um acaba na sua ilha. Pobrezinho e queixoso, mas com um orgulho de ser o único, de ser o primeiro e de ser mais desgraçado que o outro. Enfim, uma espécie de conversa de centro de saúde: até na desgraça sou mais que o outro, sofro mais, tenho uma doença pior e já tive todas as que os outros que estão na sala tiveram. Mas tomo medicamentos melhores que o próximo! Os mais recomendados pelas principais marcas de máquinas!

    Quanto a mim todas estas questões se prendem com o medo e a culpa. Medo de nos entregarmos, medo de sentirmos e dizermos gosto realmente e invisto; ou não gosto, não quero e invisto nisso também. No fundo, no fundo somos uns moralistas para connosco mesmo e para com os outros. Vivemos pregados aos moralismos católicos que a cada passo do nosso sentir e pensar nos fazem sentir culpados. E culpados nos querem para melhor nos controlar. E isso é aceite muitas vezes inconscientemente. E quando alguém abre o olhinho das duas, três ou tem de baixar a garupa ou é louco ou acaba por saltar fora.

    Além de que os mecanismos para que não vejamos o outro frente a frente, de igual para igual tem haver com preconceitos instituídos que nós muitas vezes vamos atrás:”Aaaahhh fulano de tal é negro ou cigano ou gay então responde a este padrão social! Aaaahhh fulano de tal é de tal lugar, então é gringo. Tem dinheiro e explora o próximo e é gay às escondidas!” Esse for o contrário? E se for o cigano a explorar o gringo? E se o negro abominar o gay? E se o gay for homofóbico?” Aaaaahhh, mas isso já não vem contemplado no programa da caridadezinha que se quer manter, porque com o paternalismo se perpetuam as desigualdades e assim somos todos muito bonzinhos e a culpa é sempre do outro.

    Resumindo, essa coisa de carregarmos preconceitos e provocações de trazer por casa agravam a escoliose e despoletam sulipampas entre os demais. Despoletam achaques naqueles que lutam contra os seus próprios preconceitos. Naqueles que acreditam que todos podemos ter igualdade de oportunidades, livre acesso à informação e que o que deve ser premiado é o mérito e não a”Xica Espertiçe do Chega-te à Frente Não Sejas Toino”; “do “deixa-me lá pôr-te para baixo para me valorizar”. Nestes moldes haveremos de ser sempre uns pobres coitados das franchas da Europaaaaa velha e cansada. Uns queixosos provincianos. Lamento se ofendo alguém, mas já é tempo de mudarmos de atitude e deixarmos de ser vítimas de nós mesmos e olhando o outro como um possível inimigo que me vai roubar o meu quinhãozinho do meu lugarzinho ao solzinho. Porque mais vale pouquinho do que nada.

    Porque, afinal, até nem somos assim tão pouquinhos a querer mais. Mais dignidade. Mas isso conquista-se, a dignidade não vem no Kit da Maternidade, juntamente com a fraldinha, o óleo e a toalhita para limpar a remela e mais o livrinho ensinando como cuidar do bebé.
Para conquistarmos essa tal de dignidades temos de estar juntos sem Uis!, nem Ais!

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