segunda-feira, 28 de junho de 2021

AS PAREDES TÊM OUVIDOS

Durante muitos anos forram-me com aquele papel grosso de parede com uma textura que dava para limar as unhas. Na sala de jantar o papel era dum tom verde seco para dar aquele ambiente romântico e também utópico às longas reuniões que se faziam noite adentro entre a leitura da nova peça escrita por alguém que foi afastado pelo partido. Aqui entre nós: as paredes têm ouvidos, mas eu mantenho a honestidade e o medo de não pronunciar esse nome do artista que virou maldito até ao seu suicídio. Mathias é o meu dono apesar de ele não me ter comprado e sim o partido ter me oferecido para esse conceituado encenador. Eu localizo-me até hoje no centro da cidade. Mathias agora vive no campo, depois da queda do muro não quis voltar aonde guardava belas, melancólicas e trágicas memórias. Depois que lhe mostraram as escutas instaladas em mim pela KGB decidiu morar no Brasil, no interior do Estado de São Paulo. O que conto a seguir escutei dum sonoplasta da ex companhia teatral de Mathias seu amigo íntimo. Escutei na minha entrada principal quando me puseram à venda assim que a especulação imobiliária disparou em flecha: Mathias, um dia cruzou-se com um homem de idade bastante avançada e por momentos teve a sensação de que conhecia aquelas feições de algum lugar. Nessa noite sonhou com o dia em que os nazis levaram o seu pai em Leipzig, tinha ele 3 anos. Quem o algemou era aquele homem, mas muito mais jovem claro. com quem se cruzara numa rua de Bauru. Na manhã seguinte, ao som de Uakti, comeu um strudel feito por ele mesmo e bebeu uma água de coco. Depois deu um longo suspiro. Enquanto uma nuvem passava do Oeste para Leste.

A Piu
24/06/2021
Pintura: Michael Sowa

Sem comentários:

Enviar um comentário