quarta-feira, 21 de março de 2018

A SAGRAÇÃO DA MULHER PALHAÇA- breves (?!?!) considerações duma palhaça portuguesa residente em terras tropicais

“Começar de novo e contar comigo vai valer a pena ter amanhecido. Sem as tuas garras sempre tão seguras. Sem o teu fantasma. Sem tuas loucuras” (Ivan Lins)



Falar de acerca de humor significa falar acerca das nossas emoções. Rir é um exercício para compreender o sentido da vida. Falamos do quê quando pensamos o humor, a mulher e a mulher palhaça? Rir é universal, o humor é local mas pode ser universal, também. Rir é um bom exercício para relaxar e relativizar os nossos medos e as nossas crenças mais profundas. Até ao momento é um grande desafio, no mundo inteiro, ser palhaço e palhaça como escolha de vida. Um bom palhaço é um bom ator não é necessariamente um bom palhaço, mas é uma ótima oportunidade mergulhar nesta linguagem. O estado do palhaço é um estado de graça. Ter graça é ter piada, charme. Neste sentido ser engraçado é ser charmoso. Quando estamos alerta, em prontidão, nós estamos em estado de graça.
Estar em cena é estar de corpo e alma e também com o espírito. O nosso corpo é a nossa ferramenta, assim como a nossa voz. Podemos usar ou não a voz, mas o corpo deve estar presente. Nunca assisti a nenhuma apresentação onde o palhaço ou a palhaça estivessem ausentes da cena. É uma ideia, mas nesse caso a proposta é outra, visto a linguagem de palhaço contemplar a relação, o olho no olho que cria empatia. Estar de corpo presente é respirar. Quando sabemos respirar nós ficamos disponíveis para apreender e sentir. Damos espaço para o acontecimento. Essa prática é espiritual. Enfim, a questão da espiritualidade é bastante profunda, mas temos de começar por algum lugar para pelo menos termos o propósito de sermos melhores seres humanos. Para sermos melhores seres humanos, plenos e inteiros, podemos e devemos exercitar essa musculatura subjetiva e sutil ao qual denominamos de espírito. Logo temos de aprender a respirar para sentir, a nos silenciarmos para escutar, a parar para observar. Focar na nossa espiritualidade é focarmos em nós mesmas, o que nos convida a nos auto conhecermos gradualmente. O auto conhecimento é a sabedoria de lidar com aquilo que nós somos, as nossas vulnerabilidades, os nossos exageros, as nossas neuroses e brincar com os mesmos. Rirmos de nós é curativo, liberta dor.

A comicidade feminina, quem quiser ir por esse caminho, abre-nos portas para rir do que nem sempre é agradável e ao limite agressivo. Rir de nós é pacifista e emancipatório. Rir do outro, diminuindo-o sem que haja uma relação empática estabelecida, é violento. Rir da violência a que muitas vezes somos sujeitas ou sujeitamos outrem é um desafio, pois requer honestidade, capacidade de desconstruir as nossas misérias e muita paz de espírito. E essa paz de espírito adquire-se com a espiritualidade. Redundância. Isto é, por miúdos, adquire-se com a prática meditativa. Rir da violência, com o objetivo de erradicar a mesma, requer sabedoria, delicadeza e coragem. Como rir da violência doméstica? Como rir com leveza do assédio moral e físico ao qual podemos estar sujeitas no nosso dia-a-dia, seja por parte dum desconhecido ou desconhecida ou duma pessoa próxima que ao limite depositamos a nossa confiança? Como rir da pobreza, da exploração, do genocídio dos povos indígenas no continente Americano, por exemplo? Aí está o desafio! Como rir de algo que nos fere sem perpetuar sentimentos negativos e sim de alteridade, de revolução interior para agirmos no mundo com mais leveza e amorosidade? Sem uma prática efetiva, a teoria sobre a revolução interior é um grandessíssimo clichê recheado de baboseira. Abraçar a paz e a luz é enfrentarmos a escuridão, acolher e cuidar com sensibilidade as nossas sombras. Não há luz sem sombra e a grande sacada é dançarmos patética e poeticamente com essas nuances de luz, essas ambiências do ser e do estar. Dilatar as nossas contradições, manias, medos com amorosidade irreverente é uma doação que podemos denominar de sagração da mulher palhaça.

Tenho-me questionado, de há uns anos a esta parte, acerca de corpo e gênero na arte da palhaçaria. A comicidade feminina, com foco no arquétipo do palhaço, é algo relativamente recente. Assim como refletir acerca dessa especificidade no contexto teatral e circense em grupo, passando a ser este um movimento mais amplo e cada vez mais sólido e com visibilidade com o passar do tempo. Esse movimento foi iniciado com as Marias da Graça no Rio de Janeiro. Hoje outras mulheres palhaças, por todo o Brasil tomam a iniciativa de criar encontros, mostras e festivais consagradas à comicidade feminina. Há pelo menos seis eventos com visibilidade nacional e internacional que acontecem em várias cidades e Estados. No Rio de Janeiro “Esse Monte de Mulher Palhaça”, em São Paulo “Encontro Internacional de Mulheres Palhaças”, em Brasília “ Festival Palhaças do Mundo”, em Porto Alegre “Mostra a Tua Graça Palhaça”, em Recife, em Belo Horizonte “Festival Palhaça na Praça”, em Chapecó “Palhaçaria Feminina”, entre outros.
É um clichê escrever que hoje as mulheres estão a ocupar um espaço considerável em muitas áreas da vida pública, nomeadamente nas artes cênicas com especificidade na palhaçaria. Porém, não deixa de ser importante sublinhar esse fenómeno social, assim como relembrar que em muitos contextos sociais bem perto de nós a liberdade da mulher é restringida e esta. Infelizmente, é alvo de abusos e maus tratos tanto num ambiente doméstico como profissional. E esse abuso de confiança é transversal a idades, meios socio e econômicos e culturais. Talvez seja esse o principal motivo, que agrega outros, para que haja uma necessidade cada vez mais urgente das mulheres no Brasil se mobilizarem para se emanciparem. Escrevo “talvez”, pois como portuguesa ainda estou tentando entender as semelhanças e diferenças de todo este processo emancipatório feminino em curso desde há umas décadas até à atualidade. As mulheres estão-se organizando em várias frentes para se afirmarem efetivamente como sujeitos sociais, logo históricos. Assim, as mulheres sentem que não estão sós nesta conquista pela autonomia não somente financeira, como emocional. Esse sentido de pertença é de extrema importância, pois firma esse objetivo de conquista total de autonomia e reconhecimento.
A visibilidade das mulheres, tanto na literatura como nas artes no geral, tem ganho expressão desde meados do século XX. Todavia, a visibilidade das mulheres autoras da sua própria história, com a sua própria visão de mundo colocada em palco, conquistando uma autonomia no meio artístico e no mercado de trabalho, é algo que com muito boa vontade podemos estimar em uns quarenta anos de existência.
A palhaçaria feminina e os encontros que daí surgem servem exatamente para podermos refletir acerca de como nos enxergamos enquanto mulheres, cidadãs e artistas.
A cultura do corpo, enquanto objeto apetecível e consumível sexualmente, está muito presente no contexto brasileiro. Essa cultura é construída, difundida e vendida pelo principal canal televisivo. É uma imagem que se vende para o mundo inteiro. Porém, há um histórico que vem antes mesmo da era televisiva. O Brasil tem uma herança colonialista e esclavagista ainda bastante visível. Esta herança manifesta-se nos corpos das mulheres, como estas se exprimem, naturalizando uma conduta estereotipada que reproduz relações de desigualdade. A importância que se dá ao corpo e o apelo sexual, fruto disso, é naturalizado, tanto nos homens como nas mulheres. Essa naturalização hereditária do desejo colonizador foca-se na satisfação imediata de desejos fugazes coreografados com trejeitos televisivos, tais como boquinhas, espasmos, posturas coquetes muitas vezes explicitas são a reprodução de uma mentalidade máscula dicotómica onde há a presa e o predador. Não é de espantar que existe a cerveja brasileira “ Devassa” com um corpo de mulher igualmente bebível. O que é instigante observar é a naturalização desse padrão de comportamento por parte das mulheres; ao ponto de adotarem esse mesmo padrão, colocando o homem no centro duma disputa em que o ego do mesmo inflama e a dúvida sobre o nível de auto estima das envolvidas se levanta. Por outro lado, sendo eu portuguesa, nascida no final do fascismo, seis meses antes, devo lembrar que as mulheres que nasceram e cresceram neste regime dependiam dum modo geral da boa vontade do marido, do pai ou de outro homem de quem estivessem dependentes para serem autorizadas a viajar; além de serem mal vistas e em muitos casos escorraçadas por se divorciarem. Umas não podiam trabalhar e em alguns casos cuidarem da sua própria imagem e beleza exterior era desprezado e estigmatizado. Em suma, as suas liberdades eram bastante acanhadas e assumir o desejo e a libido era coisa de devassa. Isso hoje não é assim, ou esperemos que já não seja, mas a repressão sexual ainda é algo que não está resolvido completamente. Pois já nem se trata de fazer ou deixar de fazer, às claras ou às escondidas, mas de tentar entender com a alma e o espírito em que patamar colocamos o desejo e prazer como algo emancipatório.

Todas nós sabemos, ou deveríamos saber, que essas liberdades reprimidas vêm mesmo antes do fascismo do Estado Novo. A Igreja Católica foi e tem sido a principal responsável pela condição da mulher ainda não se ter completamente emancipado. Mesmo que esta hoje não atue explicitamente o nosso padrão de recusa da libido como algo natural, saudável, libertador e pleno está no chip kármico. O karma não é senão um padrão ou vários padrões de comportamento aprisionantes, logo limitados que não promovem felicidade e que passam de geração em geração. Como o poeta português José Afonso canta: “Há quem viva sem dar por nada, há quem morra sem tal saber.” Desenvencilharmo-nos dos karmas é um dever que temos para com nós mesmas, para com a Humanidade, para as gerações seguintes, assim como para o planeta. Alguém que não traz dentro de si amor-próprio pode-se tornar alguém altamente destrutivo, já não falando que é uma pessoa triste e deprimida.

Pessoalmente, eu tive a sorte de crescer em democracia. Sim, é uma questão de sorte o lugar e a época em que se nasce e cresce. Principalmente estar livre dessa nuvem obscura de fascismo com a tríade “ Deus, Pátria, Família” como pano de fundo. Haverá explicações isotéricas para vivermos em determinada época e contexto, mas eu não sou competente para as dar, correndo o risco de me tornar uma ‘ isso histérica’. Não vou escrever que cresci em plena democracia, pois esta sempre andou aprendendo a caminhar, umas vezes mais comprometida que outras. Hoje, se não estivermos alerta, as liberdades conquistadas a punho podem ter um retrocesso.

Lidarmos com liberdade e amorosidade com o nosso corpo e desejos aprende-se com essa prática de auto conhecimento, que se dá através da meditação, da expressão criativa. Seja esta através da escrita, da pintura, da dança, do teatro ou outras formas de nos conhecermos profundamente para nos desenvencilharmos dos velhos padrões embutidos de avó para mãe e de mãe para filha. Olharmos para dentro de nós permite-nos aceitar quem nós somos e confiarmos no nosso potencial com humildade, mas com o devido brilho que nos faz avançar e crescer sem necessitar de cairmos em comparações, muito menos em competições. Quando nos comprometermos a nos superarmos a nós mesmas, seja a nível pessoal como artístico, ficamos felizes que outras companheiras e companheiros estejam nesse caminho. Este caminho é profundamente belo e instigante. É estimulante caminhar junto sem recear a solitude. A solitude é capacidade de caminhar com autonomia, sabendo que não estamos sós. Juntas e juntos somos mais! Muito mais! Considero importante ressaltar ainda que existem homens que estão interessados nessa consagração da comicidade feminina como arquétipo da criação, criatividade e despojamento das velhas relações de poder que são risíveis, porque absurdas e desnecessárias. Dispormo-nos a alcançar o nosso Eu Maior não nos coloca num lugar aborrecido de não ter mais nada para ir e rir, pois atingimos a perfeição e a harmonia. Achar isso já é risível. Respirar e praticarmos meditação que nos leva a uma consciência cósmica, a uma consciência que está muito acima das instituições religiosas e relações de poder entre seres viventes. Uma consciência de que somos tudo e não somos nada. Que fazemos parte dum Todo que muitas vezes não sabemos explicar com o nosso intelecto, com o nosso racional, mas sentimos quando estamos conectados com a energia da lua, do sol, da terra, das plantas. Isso é uma consciência ancestral que muitos povos indígenas ainda têm e que o Ocidente tem desprezado.

Quando estamos livres das nossas próprias prisões internas, logo emocionais, somos mais espontâneas, leves, mais livres para brincar e rir e transformar isso em arte. A espiritualidade é sensual e sensacional, pois podemos redescobrir a nossa libido, o prazer de ter o corpo e o comportamento que temos livremente porque somos únicas e únicos dentro duma comunidade. A liberdade consciente é um imenso manancial de possibilidades em que rir estará sempre incluído. Porque o riso liberta-nos do nosso próprio Ego mesquinho e tirano, possibilitando-nos o acesso ao nosso Eu Maior alegre, corajoso perante os obstáculos e frustrações e pontual. O Eu Maior é a nossa essência, a nossa espontaneidade e discernimento, a nossa calma e prontidão em agir num estado de leveza e brincadeira. Em suma, estarmos em estado de graça é recuperar a nossa criança livre que faz malabarismo com o consciente, subconsciente e inconsciente. E isso requer a prática do auto conhecimento. Melhor palhaça melhor, ser humano que com sabedoria pratica sustentabilidade emocional. Nós só podemos levar alegria e dar amor aos nossos interlocutores, ao nosso público, quando trazemos dentro de nós essa alegria de ser e estar e esse amor de trocar.

Resumindo e concluindo, rir de nós mesmas ajuda-nos a encarar os nossos tiques sociais, que podemos definir como karmas que passam de mãe para filha . Esses karmas, padrões de comportamento são construídos numa relação de dominação. Logo, não igualitária. São vícios de relação com o mundo interior e exterior. A liberdade não é um vício. A liberdade é termos a capacidade de sair das gaiolas que muitas vezes nós criamos para nós próprias. Rir como ato de desconstrução de ideias feitas sobre nós e sobre o ‘outro’ contempla desconstruir a ideia de corpo, de gênero e espiritualidade. Desconstruir a ideia de sex appeal, com base na gostosona poderosa que é um constructo duma sociedade consumista de olhar no lucro e satisfação rápida e descartável da líbido. Desconstruir a ideia de liberdade sexual, em que se confunde amor livre com libertinagem. Sendo que a libertinagem vai ao encontro da lógica acima descrita: consumo rápido e descartável. É igualmente, a disponibilidade de desconstruir a ideia de emancipação. Por exemplo, a realidade onde nasci e cresci, que é a de uma portuguesa nascida nos anos 70 pós revolução anti fascista, a mulher não desenvolve o seu poder de sedução, não mergulha tantricamente falando na sua líbido. Se por um lado acha que não tem que se submeter ao homem. Por outro lado, traz ainda o pudor católico secular de assumir a sua líbido na plenitude. Não esquecendo que na época da expansão marítima muitas das mulheres portuguesas eram sujeitas a envergar um cinto de castidade, cuja chave elas não tinham na sua posse. Assim sendo não perco a oportunidade de ser sarcástica, irônica: talvez seja por isso que nós, portuguesas, temos a fama de chorar muito em frente ao mar cantando o fado. Já no Brasil, na mentalidade patriarcal que ainda vigora, o corpo da mulher é valorizado como mais uma aquisição, que pode ser comparável a uma barra de ouro ou uma extensão de território, fruto dum histórico colonialista e esclavagista. No meu ponto de vista, é mais que tempo de nos libertarmos de tudo o que nos impede de nos assumirmos como cidadãs, mulheres, artistas, palhaças com desejos e amor-próprio. Como tal, autónomas e em coletivo podemos abraçar essa causa que é: nós juntas somos mais sem competição, porque trabalhamos para sermos competentes no individual e no coletivo.

Ana Piu
Brasil (texto escrito em 02/05/2017 e publicado em 21/03/2018)

Ai fiu fiu é um sempre um fiu fiu. Mais fiu fiu, mas sem coisificar. Mulher 'num' é objeto. 'Xim'?
Primeiro Encontro de Palhaças e Circenses do Vale do Paraíba.

O nosso maior fantasma e carrasco somos nós mesma. Inteiras em equílibrio duma só perna ou das duas podemos num movimento de arte marcial o que não nos pertence ou não nos pertence mais.Foto: Estúdios CarbonoAna Piu in Festival Palhaças do Mundo Brasília/ Brasil 2017
A sensualidade do bigode é poder rir, brincar dos esterótipos a que de vez em quando podemos estar sujeitas. Quem nos masculiniza para nos ridicularizar nós rimos com boquinha de beijinho. Chuac chuac. E relembramos: honrar as nossas mães e avós é honrar a existência de todo e qualquer ser vivente.
Primeiro Encontro de Palhaças e Circenses do Vale do Paraíba.





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