“Menina! Oh! Menina!”
“Quem é esta? O que é que ela quer?”
As duas ciganas aproximaram-se.
“É pá! Insistentes!”
“Menina! Oh! Menina! Não se lembra de mim?”
Abrandei o passo e parei com o preconceito que teima em se instalar em nós mesmos, mesmo que façamos tudo para o descartar.
“A menina não é a menina da poesia? Não se lembra de mim das prisões de Tires? JÁ CÁ TOU FORA!”
Admito que naquele momento frases moralistas assaltaram o meu pensamento. Contive-me, controlei-me.
“Agora vê lá o que faz!”; ”Serviu-te de lição ãããhhh?!”; “ É muito melhor estar cá fora…”
Baaaaahhhh! Moralismos da treta.
Despedimo-nos e caminhei com um sorriso no peito. Estar presa não será obviamente agradável nem trará muito boas memórias aquela mulher. O facto de vir ter comigo daquela maneira foi um elogio para mim, uma lisonja. Eu faço parte das suas boas memórias e que não se esquecem. Ela lembrou-se da poesia! Curioso! As aulas eram de teatro. Mas o que é o teatro senão poesia?
“Aaaahhh! Um dia quando tiver tempo hei-de fazer o que a menina faz!” Porreiro! Porreiro chamar-me menina!
“Bom, um dia quando tiver tempo também hei-de fazer o que o senhor faz.”
O que me deixa fora de mim é chamarem-me palhacinho! Palhacinho?! Não é que me incomode a questão de género. Assim como assim o palhaço é visto como um anjo ridículo sem sexo… é mesmo verdade que os anjos não têm sexo?
Mas palhacinho?!... Fico podre com tudo o que seja diminutivo. Criancinha, velhinhos, caridadezinha.
Então como vai o teu teatrinho? Isso dá para alguma coisa? As pessoas não vão ao teatro, não é?
Por acaso nunca nos cruzámos.
É preciso ter lata, jeito, não é?
Lata… Talvez nós, os atores, sejamos uma cambada de enjeitados. O pianista pratica, o bailarino, o artista plástico. E o ator? Decora texto? E quando não há texto? E o corpo e a voz? Comé?
Talvez eu seja maluca! Fechar-me numa sala a trabalhor o pré expressivo, o training. O physical training. Tou maluca! Sou uma free lancer. Sou livre para me lançar no espaço e zás! Não há rede, não há nada! E lá vou eu!! Se me esborrachar… Azar. Posso ir em voo picado ou planar por cima dos subsídios aos quais nunca tive direito. Nada pelo bigode.
Olha, hoje sinto-me muito mais acompanhada. Hoje eu e o s meus colegas ar tristes não somos os únicos precários.
Sinto-me a Viscondessa do país dos falidos. Vou auto gerindo o meu trabalho numa inquietação que só assim faz sentido me auto proclamar artista. Essa inquietação permite-me nunca estar desocupada. Tenho trabalho, mesmo que nem sempre seja emprego.
Mas afinal o que é que nos move para continuarmos aqui? Conheci um encenador Iraniano na Dinamarca. Confesso que levei tempo a aproximar-me dele. Receios sócio culturais. A uma dada altura disse-me que o que o motivava estar no Irão era poder acreditar que poderia ser útil na mudança, por mais subtil que fosse. De seguida fui para Berlim e percebi que aquele iraniano com bigode de aitola era mais alternativo que os alternativos de Berlim. Onde a repressão é prato do dia mantermo-nos firmes na nossa motivação é um ato de resistência. É uma alternativa ao menu. Ser alternativo numa sociedade do excesso e “permissiva” é bem mais simples.
Berlim passou por várias fases históricas bastante obscuras e hoje sente-se no dia a dia que as pessoas querem paz. E a paz deve começar dentro de nós. Mas confesso que tenho cá uma vontade de queimar os recibos verdes. Mas agora são electrónicos… E queimar o computador não dá muito jeito…
Melhor artista, melhor pessoa.
Por vezes sinto uma curiosidade mórbida quando me perguntam se custa muito trabalhar com crianças em fase terminal ou se só trabalho com crianças nesse estado.
O que é acham?
Há uma coisa que evito fazer: apiedar-me das pessoas, porque estas devem ser tratadas. De igual para igual. E é no lado saudável que devemos nos focar. E de vez em quando sermos politicamente incorrectos. Porque esta coisa de vivermos numa paz podre, sempre a sorrir e a acenar.
Fingir que não se vê também é uma tomada de posição.
Ana Piu,
Lisboa, 19 de Outubro de 2011
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