SR. CARVALHO
SRA. CARVALHO
MARIAZINHA, a empregada
CENA I
(Interior rústico moderno de uma casa portuguesa, com cadeiras
portuguesas. Tarde portuguesa. O Sr. Carvalho é brasileiro com cidadania
portuguesa, sentado na cadeira com chinelos havaianas brasileiras compradas no
aeroporto em Portugal, fuma seu charuto cubano, lendo as notícias num grupo
brasileiro do WhatsApp, perto da lareira portuguesa. Usa óculos brasileiros e
um pequeno bigode esbranquiçado português. Ao seu lado, numa outra cadeira
portuguesa, a Sra. Carvalho, brasileira com cidadania italiana, remenda meias
portuguesas. Um longo momento de silencio latino. O relógio português dá
dezessete badaladas portuguesas).
SRA. CARVALHO: Veja, são nove horas. Tomamos sopa como os
portugueses, à qual chamamos consommé como os franceses, comemos peixe espanhol
do mar português, batatas com toucinho e salada portuguesa em estilo nouvelle
cuisine francesa. As crianças beberam água portuguesa. Comemos bem esta noite.
É porque moramos nos arredores de Lisboa, em Cascais que lembra a Califórnia
pelas suas palmeiras. Também lembra Miami pela baia com os barcos e o nosso
nome é Carvalho.
SR. CARVALHO (continua a ler, funga.)
SRA. CARVALHO: A batata vai muito bem com um apontamento de
toucinho, lascas de amêndoa e o azeite da salada não estava rançoso. É azeite
português. O espanhol é outra coisa. Não quer dizer que seja ruim, só é mais
industrializado e nós somos de finos gostos. O peixe estava quase fresco. Tinha
um trago estranho e estava um pouco escuro. Eu lambi os beiços. Repeti duas
vezes. Não, três vezes. Está bem... Dez vezes
Por causa disso precisei de ir ao banheiro. Você também
repetiu quinze vezes. Só que da última vez, você comeu menos que das seis
primeiras vezes, enquanto eu comi muito mais. Comi mais que você esta noite.
Por que será? Geralmente é você que come mais. Não é por falta de apetite.
SR. CARVALHO (funga.) É que em Portugal come-se muito bem,
mas eu já tenho saudades dum churrasco.
SRA. CARVALHO: Mas a sopa estava um pouco salgada. Estava
mais salgada que você. Ha, ha, ha. Com tanta sede bebi uma garrafa de vinho
verde em dois goles. O vinho aqui é muito barato. Estar na Europa é outra
coisa! O consommé tinha também muito alho, e não tinha cebola o suficiente.
Desta vez o senhor meu marido não se queixou da fragrância saída da sua querida
esposa. Lamento que eu não tenha pedido
à Mariazinha para acrescentar manjericão. Da próxima vez, eu farei. A
Mariazinha é como se fosse da família nem precisamos de lhe pagar. Comida,
cama, roupa lavada e uma folga ao domingo à tarde está bom demais. Fizemos-lhe
o favor de a tirar do Brasil o que é que ela quer mais?
SRA. CARVALHO: Nosso garoto queria beber vinho do Porto, ele
está amando ficar bêbado. Ele é como você. Na mesa, percebeu como ele fitava a
garrafa? Mas coloquei um pouco de cachaça no copo dele. Ele estava com sede e
bebeu.
Talvez tivesse sido
melhor, ter tomado um pequeno copo de whisky português falsificado com o doce,
mas eu não trouxe a garrafa para mesa porque não quis dar às crianças o mau
exemplo da gula. Eles têm que aprender a serem comedidos e moderados
SR. CARVALHO (continua a olhar para o celular e funga.)
SRA. CARVALHO: A Sra. Joyce que ainda está à espera de
cidadania europeia conhece uma vendedora russa por nome Mija Prakova, que acaba
de chegar da China. Ela é uma grande especialista em refrigerantes Guaraná. Ela
tem um Diploma da escola de revendedores de Guaraná no Texas. Amanhã irei
comprar uma grande garrafa de Guaraná brasileiro feito na China e importado no
Texas. Não é com frequência que encontramos produtos originais da nossa terra.
SR. CARVALHO (continua a ler o WhatsApp e funga.)
SRA. CARVALHO: O Guaraná é excelente para os músculos das
pernas, para as unhas e para o sistema nervoso. Foi o que me disse o Dr.
Napoleon Stein, que trata dos filhos dos nossos vizinhos, os Zés Ninguéns. É um
bom médico. Pode-se ter confiança nele. Nunca examina os pacientes, nem fecha a
porta que dá para a sala de espera por questões de transparência nos seus
procedimentos. Tem todas as respostas sem olhar para o paciente. De trás do seu
computador prescreve o mesmo medicamento para tudo.
SR CARVALHO: Sem dúvida que é um bom médico.Há que defender o sistema de saúde público, mas os bons médicos estão no privado.
SRA CARVALHO: Muitos trabalham também no público. Ganham dos
dois lados.
SR. CARVALHO: Será que já mandaram embora esses médicos
cubanos do Brasil?
SRA. CARVALHO: Ainda bem que estamos em Portugal. Europa é
outra coisa! Deixam entrar toda gente no Brasil!.... Cubanos, venezuelanos,
haitianos...
SR. CARVALHO: Os portugueses
são muito preconceituosos e racistas.
SRA. CARVALHO: São
horríveis. Ainda bem que nós não somos assim. Mas aqui come-se bem e há mais
segurança. Na Europa todos são ricos.
SR. CARVALHO: É verdade! Até os moradores de rua falam
inglês!
SRA. CARVALHO: Sim, esses desempregados qualificados... não
querem é trabalhar! Querem trabalhar na sua área e não abrem mão de construir
os condomínios para nós vivermos. Ainda bem que os africanos e brasileiros
pobres são trabalhadores. Nós nem lhes pagamos porque é como se fossem da
família. São muito alegres como nós.
SR. CARVALHO: Naturalmente (Uma pausa, continua lendo o
WhatsApp :) aqui está uma coisa que eu não entendo. Falam tanto em notícias
fake, mas se não fosse o Messias o Brasil teria virado a casa de todos os
cubanos, haitianos e venezuelanos. Ainda bem que vivemos na Europa e estamos
muito informados com as notícias do WhatsApp. Ainda bem que temos a nossa
Mariazinha que veio conosco para ajudar a sua mãe de nove filhos. A Mariazinha
é como se fosse uma filha. Cama, roupa lavada, comida e uma folga ao domingo à
tarde.
CENA II
MARIAZINHA (entra): Eu sou a empregada. Passei uma tarde
muito agradável. Fui ao Shopping com um homem e ele passou a tarde a olhar para
as outras mulheres e falar como num sonho: “ Porque é que esta aqui não é como
as outras? ” Quando saímos do shopping, onde
fomos só para ver as lojas nada mais, esse homem acendeu um cigarro e foi-se
embora sem se despedir. Eu pedi um copo de água com palito a nadar de costas e
um guardanapo no quiosque rodoviário.
SRA. CARVALHO: Espero
que você tenha passado uma tarde muito agradável.
MARIAZINHA: Passei sim! Foi o dia mais feliz da minha vida!
SRA. CARVALHO: Agora
ao trabalho!
MARIAZINHA: O Sr. e a Sra. Martins, seus convidados, estão
aí na porta. Eles estavam à minha espera. Não se atreveram a vir por si sós.
Eles supõem que irão jantar com vocês esta noite.
SRA. CARVALHO: Ah, sim. Nós os estávamos esperando. E estamos
famintos. Que não se perceba que íamos começar a jantar sem eles. Não comemos
nada o dia todo. Tivemos que encomendar umas pizzas veganas porque a Sr. Sra,
Martins acabam de chegar da Índia para revender japamalas em feiras místicas
dos subúrbios de Madrid. Você não devia ter saído!
MARIAZINHA: Mas foram vocês me deram permissão
SR. CARVALHO: Nós não fizemos isso de propósito. Temos que
pensar seriamente se essa folga ao domingo à tarde se mantém.
texto: primeira versão com base na " A cantora careca" de Ionesco escrito na oficina " Dramaturgia para titeres" por Javier Swedzky ( Argentina) Maio 2022.
foto: protótipo de boneco antropomorfico realizado na diplomatura de teatro lambe lambe 2021 ( Republica de Chaco) com Tania Corvalan.
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