segunda-feira, 16 de maio de 2022

A HISTÓRIA PELADA

 SR. CARVALHO

SRA. CARVALHO

MARIAZINHA, a empregada

CENA I

(Interior rústico moderno de uma casa portuguesa, com cadeiras portuguesas. Tarde portuguesa. O Sr. Carvalho é brasileiro com cidadania portuguesa, sentado na cadeira com chinelos havaianas brasileiras compradas no aeroporto em Portugal, fuma seu charuto cubano, lendo as notícias num grupo brasileiro do WhatsApp, perto da lareira portuguesa. Usa óculos brasileiros e um pequeno bigode esbranquiçado português. Ao seu lado, numa outra cadeira portuguesa, a Sra. Carvalho, brasileira com cidadania italiana, remenda meias portuguesas. Um longo momento de silencio latino. O relógio português dá dezessete badaladas portuguesas).

SRA. CARVALHO: Veja, são nove horas. Tomamos sopa como os portugueses, à qual chamamos consommé como os franceses, comemos peixe espanhol do mar português, batatas com toucinho e salada portuguesa em estilo nouvelle cuisine francesa. As crianças beberam água portuguesa. Comemos bem esta noite. É porque moramos nos arredores de Lisboa, em Cascais que lembra a Califórnia pelas suas palmeiras. Também lembra Miami pela baia com os barcos e o nosso nome é Carvalho.

SR. CARVALHO (continua a ler, funga.)

SRA. CARVALHO: A batata vai muito bem com um apontamento de toucinho, lascas de amêndoa e o azeite da salada não estava rançoso. É azeite português. O espanhol é outra coisa. Não quer dizer que seja ruim, só é mais industrializado e nós somos de finos gostos. O peixe estava quase fresco. Tinha um trago estranho e estava um pouco escuro. Eu lambi os beiços. Repeti duas vezes. Não, três vezes. Está bem... Dez vezes

Por causa disso precisei de ir ao banheiro. Você também repetiu quinze vezes. Só que da última vez, você comeu menos que das seis primeiras vezes, enquanto eu comi muito mais. Comi mais que você esta noite. Por que será? Geralmente é você que come mais. Não é por falta de apetite.

SR. CARVALHO (funga.) É que em Portugal come-se muito bem, mas eu já tenho saudades dum churrasco.

SRA. CARVALHO: Mas a sopa estava um pouco salgada. Estava mais salgada que você. Ha, ha, ha. Com tanta sede bebi uma garrafa de vinho verde em dois goles. O vinho aqui é muito barato. Estar na Europa é outra coisa! O consommé tinha também muito alho, e não tinha cebola o suficiente. Desta vez o senhor meu marido não se queixou da fragrância saída da sua querida esposa.  Lamento que eu não tenha pedido à Mariazinha para acrescentar manjericão. Da próxima vez, eu farei. A Mariazinha é como se fosse da família nem precisamos de lhe pagar. Comida, cama, roupa lavada e uma folga ao domingo à tarde está bom demais. Fizemos-lhe o favor de a tirar do Brasil o que é que ela quer mais?

SRA. CARVALHO: Nosso garoto queria beber vinho do Porto, ele está amando ficar bêbado. Ele é como você. Na mesa, percebeu como ele fitava a garrafa? Mas coloquei um pouco de cachaça no copo dele. Ele estava com sede e bebeu.

 Talvez tivesse sido melhor, ter tomado um pequeno copo de whisky português falsificado com o doce, mas eu não trouxe a garrafa para mesa porque não quis dar às crianças o mau exemplo da gula. Eles têm que aprender a serem comedidos e moderados

SR. CARVALHO (continua a olhar para o celular e funga.)

SRA. CARVALHO: A Sra. Joyce que ainda está à espera de cidadania europeia conhece uma vendedora russa por nome Mija Prakova, que acaba de chegar da China. Ela é uma grande especialista em refrigerantes Guaraná. Ela tem um Diploma da escola de revendedores de Guaraná no Texas. Amanhã irei comprar uma grande garrafa de Guaraná brasileiro feito na China e importado no Texas. Não é com frequência que encontramos produtos originais da nossa terra.

SR. CARVALHO (continua a ler o WhatsApp e funga.)

SRA. CARVALHO: O Guaraná é excelente para os músculos das pernas, para as unhas e para o sistema nervoso. Foi o que me disse o Dr. Napoleon Stein, que trata dos filhos dos nossos vizinhos, os Zés Ninguéns. É um bom médico. Pode-se ter confiança nele. Nunca examina os pacientes, nem fecha a porta que dá para a sala de espera por questões de transparência nos seus procedimentos. Tem todas as respostas sem olhar para o paciente. De trás do seu computador prescreve o mesmo medicamento para tudo.

SR CARVALHO: Sem dúvida que é um bom médico.Há que defender o sistema de saúde público, mas os bons médicos estão no privado.  

SRA CARVALHO: Muitos trabalham também no público. Ganham dos dois lados.

SR. CARVALHO: Será que já mandaram embora esses médicos cubanos do Brasil?

SRA. CARVALHO: Ainda bem que estamos em Portugal. Europa é outra coisa! Deixam entrar toda gente no Brasil!.... Cubanos, venezuelanos, haitianos...

SR.  CARVALHO: Os portugueses são muito preconceituosos e racistas.

SRA. CARVALHO:  São horríveis. Ainda bem que nós não somos assim. Mas aqui come-se bem e há mais segurança. Na Europa todos são ricos.

SR. CARVALHO: É verdade! Até os moradores de rua falam inglês!

SRA. CARVALHO: Sim, esses desempregados qualificados... não querem é trabalhar! Querem trabalhar na sua área e não abrem mão de construir os condomínios para nós vivermos. Ainda bem que os africanos e brasileiros pobres são trabalhadores. Nós nem lhes pagamos porque é como se fossem da família. São muito alegres como nós.

SR. CARVALHO: Naturalmente (Uma pausa, continua lendo o WhatsApp :) aqui está uma coisa que eu não entendo. Falam tanto em notícias fake, mas se não fosse o Messias o Brasil teria virado a casa de todos os cubanos, haitianos e venezuelanos. Ainda bem que vivemos na Europa e estamos muito informados com as notícias do WhatsApp. Ainda bem que temos a nossa Mariazinha que veio conosco para ajudar a sua mãe de nove filhos. A Mariazinha é como se fosse uma filha. Cama, roupa lavada, comida e uma folga ao domingo à tarde.

CENA II

MARIAZINHA (entra): Eu sou a empregada. Passei uma tarde muito agradável. Fui ao Shopping com um homem e ele passou a tarde a olhar para as outras mulheres e falar como num sonho: “ Porque é que esta aqui não é como as outras? ”  Quando saímos do shopping, onde fomos só para ver as lojas nada mais, esse homem acendeu um cigarro e foi-se embora sem se despedir. Eu pedi um copo de água com palito a nadar de costas e um guardanapo no quiosque rodoviário.

SRA.  CARVALHO: Espero que você tenha passado uma tarde muito agradável.

MARIAZINHA: Passei sim! Foi o dia mais feliz da minha vida!

SRA.  CARVALHO: Agora ao trabalho!

MARIAZINHA: O Sr. e a Sra. Martins, seus convidados, estão aí na porta. Eles estavam à minha espera. Não se atreveram a vir por si sós. Eles supõem que irão jantar com vocês esta noite.

SRA. CARVALHO: Ah, sim. Nós os estávamos esperando. E estamos famintos. Que não se perceba que íamos começar a jantar sem eles. Não comemos nada o dia todo. Tivemos que encomendar umas pizzas veganas porque a Sr. Sra, Martins acabam de chegar da Índia para revender japamalas em feiras místicas dos subúrbios de Madrid. Você não devia ter saído!

MARIAZINHA: Mas foram vocês me deram permissão

SR. CARVALHO: Nós não fizemos isso de propósito. Temos que pensar seriamente se essa folga ao domingo à tarde se mantém.

A Piu
Br, maio 2022

texto: primeira versão com base na " A cantora careca" de Ionesco escrito na oficina " Dramaturgia para titeres" por Javier Swedzky ( Argentina) Maio 2022.

foto: protótipo de boneco antropomorfico realizado na diplomatura de teatro lambe lambe 2021 ( Republica de Chaco) com Tania Corvalan.




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