sábado, 10 de julho de 2021

PARVOÍCES À PARTE


Já o Gil Vicente( 1465-1536) foi o nosso Shakespeare (1564-1616). Já se vê que o Gil é mais velho, mas se andarmos aí pelo mundo muitos conhecerão o William, assim como o Chaplin, e não o Vivente, nem o Vasco Santana. Olha outro Vasco que não era Gama!! Mas este Vasco foi uma estrela do cinema de comédia do Estado Novo. Fez rir a população em momentos de miséria e perseguição. Verdade seja dita eu ainda me riu desse cinema dos anos 40 em que as marchas populares foram um construto do governo de Salazar tal qual o Carnaval de Getúlio Vargas. Apropriam-se de manifestação festivas para criar uma identidade nacionalista, patriótica e assim entreterem o povo de forma populista para que as decisões sejam tomadas pelos altos mandatários. Já não falando que no século passado, em terras brasileiras, as rodas de samba eram proibidas e punidas e assim como outras manifestações de matriz africana.
Já o Gil Vicente servia ao rei. Escrevia, encenava, atuava com a sua trupe para a corte e coroa portuguesa. Era uma vertente do bobo da corte mas mais erudito em que misturava finamente a erudição da escrita, do conhecimento das diferentes camadas sociais à cultura popular. Acredito que até hoje em Portugal o Gil Vicente seja apresentado e estudado no ensino secundário/ médio. A incrível experiência de olhar para um texto escrito em português arcaico e só pescar o sentido duma palavra e frase. Por isso existem os estudiosos para traduzirem e contextualizarem. Mas o teatro é vivo. Quando vira somente teoria é chato para caramba!
Nestes tempos de confinamento muitas universidades públicas brasileiras oferecem gratuitamente cursos de extensão. Eu estou em dois e digo e repito: VIVA A UNIVERSIDADE PÚBLICA PARA TODES DE FORMA DEMOCRÁTICA!!!
Numa aula foram convidados dois especialistas portugueses em Gil Vicente que também são artistas. Eu conheço-os. Conterrâneos dum país em que viramos a esquina e 'tá lá toda a gente ou quase toda. Quem estuda e segue o oficio de teatreiro inevitavelmente passa pelo Gil Vicente. É muito divertido levar a cena uma peça dele. As suas farsas, os seus autos de criticas afiadas à mentalidade mesquinha, gananciosa da época que em alguns pontos perpetua-se no tempo assim como a mania das grandezas, o endividamento sem fim e o viver de aparências. Não sei se ainda se compram títulos visto a monarquia já não existir há mais de 100 anos, mas houve aí um governante que conclui o seu curso universitário a um domingo.... O mesmo que foi preso por corrupção e depois solto por falta de provas...
Foi perguntado aos especialistas portugueses o que pensavam da representação dos selvagens nas peças de Gil Vicente e se o teatro desta época nas colónias não era uma forma de dominação. A minha respiração suspendeu deste lado da tela e fiquei na expectativa do que os conterrâneos iriam responder. Não sei se (in)conscientemente eles foram esquivos e superficiais quanto á resposta. Todes nós sabemos, os que passamos pela escola que os jesuítas usavam o teatro como forma de catequizar os " tais dos selvagens".Isso teve que ser um especialista brasileiro a responder educadamente para colmatar o esquivanço dos meus conterrâneos. Quanto ao " selvagens" responderam que os portugueses da época em Portugal continental e insular nutriam uma fantasia, um imaginário dos selvagens aliado às manifestações artísticas oferecidas à coroa recheadas de opulência. Olhem... Eu senti aquela vergonha alheia.... Não dá mais apara dourar a pílula e contar a história a metade principalmente para pessoas que habitam um território que foi colónia portuguesa e que até hoje as suas feridas estão abertas na alma e no espírito dos povos que foram subjugados. As pessoas não fantasia e sim seres humanos com sentimentos e emoções. Tampouco são curiosidades de parque temático e cortejos que servem o poder desmesurado. Além do teatro não ser só entretenimento e sim um ato politico que dispensa o panfletário é uma forma viva de nos reconciliarmos com dignidade com o que passou e não se pode perpetuar mais. O que é certo é que hoje os monumentos históricos são parte do roteiro turístico português. Nada contra, mas apresentar o Mosteiro dos Jerónimos e a Torre de Belém à luz duma mentalidade humanista e desempoeirada e não com uma narrativa saudosista de megalomania. Infelizmente esta última ainda em muitos casos é a oficial... Sinto muito meu querido Brasil e países africanos. Cada um faz a sua parte. Esta é a minha.
A Piu
Campinas SP 10/07/2021
foto: 'Auto da Barca do Inferno", Teatroesfera, Portugal 2006 encenação: Paula Sousa, personagem parvo: Ana Piu - eu mesma
'Auto da Barca do Inferno", Teatroesfera, Portugal 2006 encenação: Paula Sousa, personagem parvo: Ana Piu - eu mesma


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